terça-feira, 15 de abril de 2008

Portugal?

por João Bernardo

[Publicado em Política Operária [Lisboa], ano XXII, nº 107, 2006]

Os marxistas sempre conviveram incomodamente com o nacionalismo. Na obra teórica de Marx e de Engels figuram as classes sociais e as relações de exploração, e neste contexto o nacionalismo não ocupa qualquer lugar. Onde o nacionalismo aparece é nos escritos de circunstância dos dois amigos, em artigos de jornal e panfletos de intervenção, e ainda em livros dedicados a assuntos correntes. Aí deparamos com um tipo de nacionalismo que deixaria perplexos ou indignados os marxistas se os marxistas tivessem interesse ou propensão pela leitura da obra de Marx e Engels. Trata-se de um nacionalismo regido por dois princípios básicos.

Um destes princípios, o antieslavismo, recusava o direito de existência às nações eslavas que pretendiam emancipar-se do Império Austro-Húngaro ou do Império Otomano, com a excepção única da Polónia, devido ao ocidentalismo de que ela dava mostras e à sua hostilidade às restantes nações eslavas hegemonizadas pela figura, real ou simbólica, do czar. O antieslavismo de Marx foi tão afrontoso que a sua filha Eleanor, ao reeditar, passados dezasseis anos sobre a morte do pai, um longo panfleto contra a política externa dos czares no século XVIII, achou preferível suprimir algumas passagens da edição original, até que Stalin, que usava uma tesoura maior e mais aguçada, proibiu definitivamente o livro. Engels não ficou atrás do amigo, e em 1934 Stalin impediu a difusão na União Soviética de uma obra sua, acusando-a, com inteira razão, de ter apresentado uma guerra eventual entre a Alemanha burguesa e a Rússia czarista não como um conflito imperialista mas como um esforço de libertação nacional da parte da Alemanha. Aliás, ao deparar com o sistemástico antieslavismo de Marx e de Engels a censura staliniana manteve-lhes inéditos vários manuscritos. E assim os pais fundadores foram vítimas imprevistas da ortodoxia dos discípulos. Coisas que sucedem aos criadores de escolas.

O segundo princípio básico seguido por Marx e por Engels para avaliar as questões nacionais era a viabilidade económica dos aspirantes a países e o facto de as suas populações terem ou não participado no que então se julgava ser a história, com maiúscula. Povos

inviáveis e povos «sem história» estariam, na opinião dos dois amigos, condenados ao desaparecimento. Este princípio foi seguido pelas alas maioritárias dos partidos integrantes da Segunda Internacional, e aqueles marxistas que depois bradaram contra o reformismo de tais partidos e contra o seu colonialismo ignoravam na maior parte dos casos que os insultados estavam apenas a ser fiéis aos mestres. Se a questão das nacionalidades começou a ser apresentada a outra luz por facções minoritárias nos congressos da Segunda Internacional e se a perspectiva da autodeterminação foi depois plenamente aceite na Terceira Internacional, isto não se deveu aos marxistas mas aos povos colonizados, que impuseram a sua presença e que, apesar de serem «sem história» e de pretenderem formar países economicamente inviáveis, disseram: estamos aqui – e instalaram-se para ficar.

Os marxistas aproveitaram os anseios de descolonização e fizeram-no com eficácia prática e proveito político. Mas que lições teóricas haveriam de tirar do assunto, isso ficaram sem saber, e ensaiaram com pouco ou nenhum êxito várias teorias que ao mesmo tempo explicassem as classes e as nações. Na Alemanha a seguir à primeira guerra mundial um Partido Comunista que se tornara o maior do mundo depois do da União Soviética procurou aplicar relativamente à questão da opressão nacional uma linha tão obtusa que contribuiu poderosamente para instalar Hitler na chancelaria. E depois de terem sido um elemento activo em todos os processos de descolonização, os comunistas viram-se marginalizados na vida política, quando não mesmo liquidados fisicamente aos milhares e aos milhões, em todos os novos países independentes, com a excepção singular da China, onde precisamente haviam seguido um chefe que não obedecera aos ditames da Terceira Internacional nem procurara resolver os problemas da descolonização a partir dos textos dos mestres.

Mas por que estou eu a alongar-me sobre este assunto e a perder um espaço precioso, do pouco que foi posto à minha disposição?

É que, segundo ouvi dizer, muito se tem comentado o facto de uma percentagem considerável de portugueses ser favorável ao desaparecimento de Portugal através da sua integração na Espanha. Todavia, o espanto de uns, a indignação de outros e, sejamos sinceros, sem dúvida o alívio dos restantes parece-me resultarem de uma confusão, porque se está a dar

o mesmo nome a duas coisas muito diferentes.

Uma coisa é o Portugal que terminou em 1580 ao integrar-se nos domínios de um Habsburgo do ramo ibérico, outra coisa é o Portugal onde sessenta anos depois, aproveitando a crise do império dos Filipes, uma pequena conspiração colocou no trono uma dinastia nativa. Se os leitores da Política Operária não padecessem da habitual indiferença à estética revelada pela extrema-esquerda quando está fora do poder – digo quando está fora do poder,

porque quando chega ao poder logo descobre que os artistas são os piores inimigos se não forem os mais úteis propagandistas – eu poderia demonstrar rapidamente que se trata de dois Portugais distintos. Veja-se a linhagem da pintura que vai desde o Ecce Homo de um mestre desconhecido, desde Nuno Gonçalves, do mestre da Lourinhã, de Vasco Fernandes até chegar a Gregório Lopes, a Cristóvão de Figueiredo e a Cristóvão Morais. E o Domingos Vieira que em 1635 pintou aquele assombroso retrato de D. Isabel de Moura só se pode entender no contexto amplamente ibérico que o influenciou e formou, não no do Portugal estabelecido cinco anos depois, onde o rei João IV se faria retratar pelo artífice Avelar Rebelo a quem mesmo um fidalgo de província como ele deveria ter tido vergonha de recorrer. Depois do hiato na pintura portuguesa quem veio? Josefa de Óbidos!

O Portugal de antes de 1580 expandira-se por todo o lado, mas, em vez de lhe esgotar a seiva interna, isso como que o renovara. E a par das espoliações e das atrocidades restou uma cultura capaz de reflecti-las, ao mesmo tempo elogiosa e criticamente, e que por isso conta no mundo. Pelo facto de enviar a sua gente desde o Japão até ao Amazonas o país não deixara de existir no ocidente das Espanhas.

Mas o Portugal nascido em 1640, o país dos Braganças, da Josefa de Óbidos e da doçaria freirática, foi incapaz de criar dentro das suas fronteiras uma cultura própria. Enquanto a depauperação de Portugal era consagrada em 1703 com a assinatura do tratado dito de Methuen, o Brasil desenvolvia-se economicamente, e apesar de todo o ouro que João V de lá tirou, foi no Brasil e não em Mafra nem em Lisboa no Largo da Misericórdia que se edificou uma grande arquitectura barroca, foi lá que surgiu uma inventiva escultura barroca, foi lá que se fez ouvir uma corrente original de música barroca. Aliás, o pouco de bom como algum do mau dos edifícios barrocos portugueses foi a arquitectos estrangeiros que se deveu. Já capital económica do império, o Brasil depressa passara a ser também a sua capital cultural. Portugal tinha-se esvaziado de conteúdo, o que havia estava no Brasil. E quando a metrópole quis aproveitar simultaneamente Angola, apesar do engenho e da diligência de Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, foi incapaz de fazê-lo. Portugal não chegava para duas colónias ao mesmo tempo. Até que, fugindo a um general francês que nem marechal era, o monarca se estabeleceu no Brasil, e a colónia, que já assumira a hegemonia económica e cultural, converteu-se na cabeça política do império.

Aliás, a propósito da fuga de João VI vale a pena reflectir em algo a que geralmente não se presta atenção. Também a Espanha se encontrava sem família real, que Napoleão atraíra numa cilada e fizera prender. E isto não impediu que toda a população espanhola se erguesse maciçamente contra o ocupante francês numa guerrilha indomável e pertinaz. Os

historiadores meditam por vezes, sem resultado, sobre as razões que fizeram o povo espanhol revoltar-se enquanto as nações de língua alemã permaneceram submissas a Napoleão e deixaram os seus improvisados chefes guerrilheiros sem apoio e quase sem seguidores, só tardiamente se sublevando alguns estados alemães. Mas a minha interrogação é outra, e eu gostaria que me dissessem por que motivo os portugueses, aqui, ao lado da Espanha, não fizeram contra os invasores o mesmo que os espanhóis?

Mas retomo o fio da minha reflexão, com João VI já no Rio de Janeiro. Alguns anos depois, rezam os manuais, o Brasil tornou-se independente, mas é falso, quem se tornou independente em 1822, ou melhor, quem foi tornado independente contra a sua vontade, foi Portugal. No Brasil o herdeiro da coroa fez o que todos eles gostam de fazer quando podem, apressou um pouco a data do acesso ao trono, e na perfeita continuidade dinástica declarou que o Brasil dispensava a metrópole. Numa carta enviada ao pai em Junho de 1822 o príncipe Pedro, nas vésperas de se arvorar em imperador, definiu como «estados independentes» «os que de nada carecem, como o Brasil», e pondo os pontos nos is acrescentou: «Portugal é hoje em dia um estado de quarta ordem e necessitado, por consequência dependente».

Quando as cortes souberam que haviam ficado sem o Brasil enviaram uma missiva ao poder executivo perguntando quantas e quais eram as colónias portuguesas e, mais especificamente, se Timor e Solor pertenciam ou não a Portugal. E note-se que os deputados daquela época eram o escol da nação, os principais negociantes, os juízes mais cultos, os burocratas mais instruídos, os oficiais do exército que sabiam matemática. Aquela interrogação é duplamente curiosa, por um lado porque mostra a verdadeira dimensão do império colonial que realmente contava para o Portugal gerado em 1640, reduzido a uma metrópole colada como adesivo ao Brasil. Mas, por outro lado, mais interessante ainda me parece ser a reacção da elite política, económica e militar que não pensou na possibilidade de construir alguma coisa dentro das fronteiras do reino.

Com efeito, será o mais lúcido dos herdeiros do liberalismo vintista quem irá orientar Portugal e os portugueses para África. A imperturbável coragem física de Sá da Bandeira só tinha equivalente na sua enorme curiosidade intelectual, e ambas alicerçaram uma notável inteligência prática. Mas ao mandar os portugueses caminharem a partir das costas africanas, onde até então se haviam localizado os empórios comerciais, para ocuparem espaços de colonização no interior do continente e «construir outro Brasil em África», Sá da Bandeira desencadeou um processo que forneceu a ocasião, quando não só o pretexto, para um movimento idêntico por parte de metrópoles muitíssimo mais poderosas. O tratado de Berlim e depois o ultimatum britânico, que cercearam as aspirações africanas dos liberais

portugueses, foram a consequência última, e de todo imprevisível, do arrojo com que Sá da Bandeira havia reconhecido a impossbilidade de dar nova vida a Portugal só nas fronteiras ibéricas.

E foi o ultimatum britânico que ditou a falência da monarquia, mostrando que os Braganças eram incapazes de levar a cabo a regeneração do país pelo colonialismo, uma vocação que Eça de Queiroz enunciou simbolicamente através da regeneração da casa ilustre de Ramires. Tornada patente e pública a inépcia da coroa nas questões coloniais, o Partido Republicano, que até à data do ultimatum fora visto como um clube de lunáticos, adquiriu um crescente apoio popular, que lhe possibilitaria vinte anos depois espantar o rei para a Ericeira e após dois dias de canhoneio na capital proclamar a república. Logicamente, o Partido Democrático não poderia senão precipitar o país na primeira guerra mundial, para que Portugal se sentasse ao lado dos vencedores aquando da distribuição dos despojos, e já que decerto não receberia nada – ninguém contava com isso – pelo menos que não perdesse o que tinha.

Salazar foi, nesta perspectiva, inteiramente lúcido quando proclamou «para Angola, e em força». Os «ventos da mudança» de que os outros falavam não sopravam aqui, porque a Grã-Bretanha pôde ver as suas colónias emanciparem-se sem que houvesse quaisquer riscos de perda de identidade da metrópole. Nem a França, ou mais exactamente Paris, deixou de ser

o que era pelo facto de a África Ocidental e Equatorial Francesa, Madagascar e a Indochina terem deixado de ser o que haviam sido. Até a pequenina Holanda soube ser um país estritamente europeu, próspero na economia e modelar na cultura, sem as suas Índias Orientais. Mas Portugal?

O golpe militar de 25 de Abril de 1974, todos sabemos, não se destinou a acabar com

o fascismo, mas a demitir um governo que não queria pôr cobro a três guerras coloniais, embora os oficiais e os soldados sentissem que era impossível vencer. O derrube do fascismo veio por acréscimo, uma espécie de brinde que obtivemos dos movimentos de libertação africanos. Mas merecêmo-lo, porque durante um ano e meio fizemos qualquer coisa de absolutamente inédito, que nunca havia sido experimentado no Portugal nascido em 1640, tentámos inventar um país dentro das fronteiras portuguesas. De uma maneira ou de outra, ou de várias maneiras ao mesmo tempo, a extrema-esquerda procurou em 1974 e 1975 criar um Portugal inteiramente novo, económica e socialmente, e que fosse um país original no mundo, capaz de trazer soluções diferentes, que ninguém tivesse feito nem visto. E fomos derrotados.

Não creio que a esquerda anticapitalista, apesar de contar já dois séculos de derrotas sucessivas – e, naturalmente, no combate ao capitalismo só poderá haver uma vitória, que é a

última – se tenha apercebido de até que ponto as derrotas são profundas quando são impostas no plano social mais do que no político. No plano social as derrotas consistem na verdadeira desorganização e reorganização da classe trabalhadora, na destruição dos seus elos mais fortes de solidariedade, na dissolução dos seus centros de resistência tradicionais, no apagamento da sua memória, e numa re-hierarquização interna, que é a condição da submissão aos exploradores. E assim, fracassada a tentativa de 1974 e 1975, voltámos plenamente ao Portugal de 1640, incapaz de existir nas suas fronteiras próprias porque é desprovido de tudo. A adesão de Portugal à comunidade europeia foi um logro para os outros países europeus, que pensaram que tinham adquirido alguma coisa e afinal ficaram só com um terminal de caminhões TIR e umas dezenas de centros comerciais e de estádios de futebol. Um país sem vida autónoma nem identidade cultural.

Discutir se este Portugal deve ou não integrar-se na Espanha é ocioso. Ele já lá está, na Espanha ou em qualquer outro lugar, em todo o lugar menos em Portugal.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

domingo, 2 de março de 2008

Descolonização

(desculpem a despaginação)

texto retirado de História de Portugal, ed. Tengarrinha, cap18

José Medeiros Ferreira*

APÓS O 25 DE ABRIL

José Medeiros Ferreira*

Eduardo Lourenço, no Labirinto da saudade, dedica algumas das melhores páginas da sua reflexão à atitude dos portugueses perante a descolonização.

Nesse ensaio de psicanálise mítica do destino português, Eduardo Lourenço salienta “Pelo império devimos outros, mas de tão singular maneira que na hora em que fomos amputados à força (mas nós vivemos a amputação como “voluntária”) dessa componente imperial da nossa imagem, tudo pareceu passar-se como se jamais tivéssemos tido essa fagimerada existência “imperial” e em nada nos afetasse o regresso aos estreitos e morenos muros de pequena casa lusitana”.

Eduardo Lourenço escrevia assim entre o verão de 1997 e a primavera de 1978, entre S. Pedro em Portugal e Vence na França. Hoje a “imagem” imperial não estará tão ausente do imaginário de alguns como parecia naquele momento. Mas então como detectou o mesmo filósofo: “Num dos momentos de maior transcendência da história nacional, os Portugueses estiveram ausentes de si mesmos...”.1

Essa “ausência” durou pelo menos um ano e meio, exatamente o tempo necessário para se operar a alienação da soberania portuguesa nos territórios sob administração colonial com a conhecida singularidade aplicada a Macau, e a exceção constituída pelo caso de Timor.

A questão africana estava no centro dos problemas nacionais a serem resolvidas e estivera certamente na origem da sublevação das Forças Armadas. Como afirmou transparentemente o então general Costa Gomes:

O que tornou inevitável a revolta do 25 de Abril foi a necessidade de resolver o problema da guerra em África. As reivindicações dos oficiais do Quadro Permanente foram quase na totalidade satisfeitas... o problema colonial era, não só o mais importante, como aquele que os oficiais conheciam melhor, tendo certamente chegado à conclusão de que só poderia ser solucionado depois de derrubar o regime então existente.2

A grande clivagem entre os oficiais do MFA e o General Spínola situou-se exatamente no rumo a dar à descolonização e esteve presente na elaboração e na apresentação do programa do movimento das Forças Armadas, tendo o general Spínola conseguido suprimir da versão original a referência ao direito das colônias à autodeterminação.

A visita a Lisboa do secretário-geral da ONU, Kurt Waldheim, de 2 a 4 de agosto de 1974, foi um marco importante nas pressões internacionais para que a descolonização portuguesa se fizesse o mais rapidamente possível, sem que isso viesse a significar um maior empenho das Nações Unidas nas conversações entre as partes.

Nos contactos que o secretário-geral da ONU manteve com os responsáveis portugueses foi explicada a posição das Nações Unidas quanto à questão dos territórios sob administração colonial, assim como a atitude da Organização de Unidade Africana (OUA) sobre o reconhecimento dos movimentos de independência como os representantes desses territórios.3

As conversações entre Kurt Waldheim e as autoridades portuguesas deram mesmo lugar a um comunicado conjunto Portugal-ONU em que se explicita o entendimento da ONU e da OUA sobre essa matéria assim como o comprometimento de Portugal a respeitar as pertinentes soluções da ONU

e a reconhecer o direito à autodeterminação e à independência de todos os territórios ultramarinos sob a sua administração, posição já consagrada constitucionalmente com a publicação de Lei 7/74 de 26 de julho. Aliás só a publicação dessa lei terá permitido a visita do Secretário-Geral da ONU naquela altura.

As relações entre Portugal e a ONU durante o processo de descolonização não foram depois tão intensas conforme deixara antever esse encontro. Notar-se-á até uma débil presença da ONU no processo de descolonização em causa.

A nomeação do professor Veiga Simão para chefe da Missão Portuguesa junto da ONU inscrevia-se no entanto no propósito de “criar responsabilidades aos Movimentos de Libertação não só perante as autoridades portuguesas como, também, perante entidades internacionais idôneas que, co-responsabilizando-se no processo serviriam de forças moderadoras aos setores extremistas”.4

Tal política teria sido “frontalmente contrariada pela Comissão Coordenadora do MFA e pelo general Costa Gomes, que consideravam aquela estratégia como abertura à interferência da ONU no processo de descolonização e, conseqüentemente, desprestigiante para o país. A única via, diziam, era a das negociações diretas com os Movimentos de Libertação”.5

O MFA irá ter, de qualquer maneira, um papel decisivo na definição dos interiocutores para as negociações de trégua, cessar-fogo, paz e transferência de soberania. Neste particular as condições militares nos teatros de guerra tiveram uma enorme influência e foram os responsáveis pelo MFA

na Guiné, em Moçambique e em Angola que pressionaram Lisboa a legitimar as conversações locais por meio de negociações com os movimentos independentistas que tinham de fato expressão militar.

Insista-se neste ponto. Os militares portugueses privilegiaram como interlocutores necessários para o cessar-fogos os movimentos que tinham expressão armada nos territórios em guerra. Como esses movimentos não desligaram a questão do cessar-fogo da questão do acesso à independência,

as transferências de soberania fizeram-se por meio daqueles movimentos.

Não por eles aparecerem envolvidos em ideologias “esquerdistas” mas por terem adotado a via do combate militar para impôr a autodeterminação.

A questão do cessar-fogo só dizia respeito aos territórios da Guiné, de Moçambique e de Angola. O que acontecerá nas outras colônias, nomeadamente em Timor já é de outra natureza e não entra neste ciclo inicial do cessar-fogo. As preferências posteriores em Angola e Timor no verão de 1975 não são da mesma natureza interpretativa do ciclo do cessar-fogo do último semestre do ano de 1974. O princípio de que a paz se negociava entre quem estava em guerra apareceu com toda a naturalidade aos oficiais que estavam na Guiné, em Moçambique e em Angola. Nas zonas de combate os militares tomaram a iniciativa de estabelecer conversações para se alcançar tréguas imediatas. Além disso pressionaram a fim de que as autoridades portuguesas evoluissem para posições mais conformes com as realidades militares e mais consensuais em termos internacionais. O membro da Comissão Coordenadora da MFA, e Ministro dos Governos Provisórios, Melo Antunes, será a expressão política dessa confluência de critérios.

Só mais tarde se poderá detectar a preferência política por certos movimentos de independência sobretudo nos casos de Angola e Timor. Mas quer na Guiné quer em Moçambique foi a situação militar que ditou o comportamento dos oficiais do MFA, dos militares em geral, e também dos negociadores governamentais.

GUINÉ-BISSAU

A descolonização da Guiné apresentava-se como a de mais difícil negociação política, já porque o PAIGC declarara unilateralmente a independência da Guiné-Bissau em 24 de setembro de 1973 em Madina de Boé e o fato fora reconhecido por 82 países membros da ONU, já porque o PAIGC

pretendia ver também reconhecido o direito à independência para o arquipélago de Cabo Verde.

Essas condições são apresentadas logo na primeira reunião entre as delegações do governo português e do PAIGC em Londres, a 25 de maio de 1974.

A particularidade de o general Spínola ter sido Governador-Geral da Guiné não teria ajudado a rapidez das tomadas de decisão sobre essas matérias.

A apreciacão de Mário Soares sobre o envolvimento de Spínola no

processo de descolonização da Guiné não foi muito positiva na altura:

Indiscutivelmente, a sua atuação não beneficiou em nada o processo. Pelo contrário: a sua intransigência, a sua incapacidade de avaliar corretamente a situação, impedem-nos de assinar em Londres um acordo com o PAIGC em melhores condições do que aquele que nós tivemos finalmente de assinar três meses mais tarde, em Argel.6

As reuniões de 25 de maio e de 13 de junho entre o PAIGC e a delegação portuguesa, presidida por Mário Soares na sua qualidade de MNE, são inconclusivas. Só depois da tomada de decisão do MFA na Guiné, numa assembléia realizada em 1º de julho, se consegue cortar o nó górdio da questão, ou seja, passar da fase da discussão sobre a natureza da descolonização (se com consulta eleitoral, se com um maior ou menor período transitório) à fase da transferência do poder.

Nessa moção, aprovada pelo MFA da Guiné, numa reunião com delegações de base de todas as unidades militares, no qual participaram cerca de oitocentos militares, considera-se que a ideologia do PAIGC tem uma grande adesão popular e domina o panorama político da Guiné; que os grupos políticos surgidos naquele território após o 25 de Abril careciam de legitimidade e de representatividade “apenas tendo servido para envenenar o ambiente político da Guiné”; que o reconhecimento internacional do PAIGC é um fato “tão forte que o número de países que reconhecem a república da Guiné-Bissau é já superior ao daqueles que mantêm relações diplomáticas com Portugal”; que a Resolução nº. 03061 da Assembléia Geral da ONU de 9 de setembro de 1973 torna ilegal a presença de tropas portuguesas; que o PAIGC é o único agrupamento político cuja ideologia e programa “asseguram a conivência e a igualdade de direitos de todas as etnias da Guiné e o respeito pelos legítimos interesses dos europeus radicados”, e assim por diante.

Como corolário de todos esses considerandos que revelam uma grande atenção quer a situação militar quer a situação internacional, essa reunião deliberou:

1. Repudiar qualquer solução local e unilateral que não fosse aceita pelo governo central de Portugal;

2. Exigir que o governo português reconhecesse imediatamente “e

sem equívocos” a República da Guiné-Bissau e o direito à autodeterminação e independência dos povos de Cabo Verde;

3. Exigir que fossem imediatamente reatadas as negociações com o PAIGC, “não para negociar o direito à independência, mas tão só os mecanismos conducentes à transferência dos poderes”.7

Em síntese, nessa reunião de cerca de oitocentos militares, em 1º de julho de 1974, reconhece-se a legitimidade exclusiva do PAIGC como representante do povo da Guiné e exige-se o recomeço das negociações entre as autoridades de Lisboa e aquele movimento de independência, conversações que haviam sido interrompidas por decisão do Presidente da república Antônio Spínola.

Semanas mais tarde, nas matas do Cantanhez, uma delegação de militares portugueses, chefiada pelo governador da Guiné Carlos Fabião, e uma delegação do PAIGC, chefiada por José Araújo, concordam num cessar-fogo em todo o território da Guiné.

O acordo de Argel, assinado em 26 de agosto de 1974 e ratificado pelo presidente Spínola em 29 do mesmo mês, reconhecia dois dados de fato: a República da Guiné-Bissau e o cessar-fogo, já estabelecido no interior da Guiné.

CABO VERDE

O acordo assinado em 26 de agosto de 1974 entre o Governo Português e o PAIGC continha, além dos preceitos destinados à transferência de soberania da Guiné, o reconhecimento do direito do povo do arquipélago de Cabo Verde à autodeterminação e à independência. As negociações para esse efeito seriam, no entanto, separadas das conversações sobre a Guiné depois daquele acordo.

Dos nove artigos do Acordo entre o Governo Português e o PAIGC, dois são dedicados a Cabo Verde.

É essa sem dúvida uma das decisões mais discutíveis do processo de descolonização dado que a unidade pretendida pelo PAIGC entre a Guiné e Cabo Verde acabou por não se verificar. Mas não é menos verdade que a Assembléia Geral da ONU havia reconhecido na sua Resolução A/2918 (XXVII) de 14 de novembro de 1972 o dito PAIGC como “representante único e autêntico do povo da Guiné e Cabo Verde”. Enquanto a descolonização da Guiné era obviamente inevitável em 1974, já a independência concedida ao arquipélago de Cabo Verde foi um ato voluntário do poder em Portugal e tem, pois, uma interpretação mais vasta radicando nas causas da descolonização, que não se resumem às necessidades dos militares e à pressão das Forças Armadas para o efeito.

O processo de transferência de soberania de Portugal para a República de Cabo Verde teve as suas especificidades. Assim não há qualquer acordo publicado, como os de Alger, Lusaca ou Alvor realizados para a Guiné-Bissau, Moçambique ou Angola respectivamente, embora tivesse havido

um documento formalizado em 19 de dezembro de 1974 no qual se previa a eleição de uma assembléia constituinte em Cabo Verde que decidiria sobre o futuro político do território.

No plano jurídico existiu, sim, o Estatuto Orgânico de Cabo Verde para o período de transição que terminaria em 5 de julho de 1975 (Lei nº. 13/74 de 17 de dezembro).

Nesse Estatuto são definidos os órgãos políticos de transição: um alto comissário, nomeado pelo presidente da República, a quem competia representar a soberania portuguesa e era o comandante-chefe das Forças Armadas no arquipélago; um Governo de Transição, composto pelo Alto Comissário enquanto Primeiro Ministro e mais cinco ministros, três nomeados pelo PAIGC e dois pelo presidente da República Portuguesa. Esse governo teria em acumulação os poderes legislativo e executivo mas o seu fim principal era o de conduzir o território à independência por meio de eleição, por sufrágio direto e universal, prevista para 30 de junho de 1975, de uma Assembléia Constituinte, prevista para a mesma data, dotada de plenos poderes soberanos para decidir sobre o futuro de Cabo Verde e sobre o seu regime político. Logo a 5 de julho, essa Assembléia declara a independência da República de Cabo Verde. Não se caracteriza a nova república como Popular como o farão a Guiné, Moçambique e Angola.

Não deixa de ser significativo saber-se que as operações de preparação dessas eleições culminaram com um recenseamento robusto tendo-se registrado cerca de 120 mil cidadãos cabo-verdeanos. Apresentou-se apenas uma lista com os nomes de 56 candidatos a deputados sob a forte influência política e militar do PAIGC.

Logo depois das independências da Guiné e de Cabo Verde foi evidente que ambos os territórios queriam aparecer como Estados na sociedade internacional. Tanto assim que, quer Bissau, quer a Praia, têm a sua própria representação diplomática no exterior, a começar por Lisboa. A unidade política dos dois territórios não estava na ordem do dia. Mas ambos haviam prestado serviços recíprocos para o acesso à independência um do outro: os militantes cabo-verdianos do PAIGC lutando política e militarmente na Guiné e ajudando a criar uma situação militar nesse território que levaria as autoridades colonialistas a encararem aí a própria derrota. Pelo seu lado, o PAIGC só aceita o cessar-fogo na Guiné se o princípio da independência também for estendido ao arquipélago de Cabo-Verde.

Prestados esses serviços mútuos, cada qual seguiria o seu caminho depois da independência.

A facilidade com que o Governo Português, nesse verão de 1974, irá aceitar o acesso à independência dos arquipélagos de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, onde não havia luta armada, dá a idéia que as autoridades de Lisboa pretendem resolver de uma vez por todas a questão dos territórios ultramarinos, vistos doravante como possíveis sorvedouros das finanças metropolitanas por meio dos chamados Planos de Fomento, e como passíveis de virem a constituir, no futuro, focos de tensões políticas ao retardador. Assim, ao mito do Portugal Uno e Indivisível do Minho a Timor, opõe-se a metodologia da descolonização uniforme. É a forma que a metrópole européia encontra de se libertar de uma vez por todas da lógica ultramarina. É o centro que dispensa a periferia.

A descolonização assim concebida não se destina apenas a ceder nos territórios onde a situação militar é má. Ela estende a sua compreensão a todas as parcelas que possam pesar no futuro sobre a lógica da liberdade de ação de Lisboa. Daí a aceleração dos processos em Cabo Verde, S. Tomé e

Timor.

S. TOMÉ E PRÍNCIPE

Se a luta armada na Guiné-Bissau teve conseqüências sobre o acesso à independência do arquipélago de Cabo Verde, onde o PAIGC não tivera expressão militar, a independência de Cabo Verde, por sua vez, vai constituir um paradigma para a transferência de soberania noutro arquipélago: o de S. Tomé e Príncipe.

Em S. Tomé e Príncipe a repressão colonial havia sido brutal no passado mesmo sem luta armada por parte dos emancipalistas. Quando em 1960 é fundado o Comitê de Libertação de S. Tomé e Príncipe (CLSTP), ainda está bem viva na memória de todos o massacre de Batepá ocorrido em fevereiro de 1953 em que teriam sido mortos mais de mil são tomenses por se recusarem a trabalhar nas roças de cacau.

O ambiente local não é pois muito propício à defesa da manutenção da soberania portuguesa por parte da população de S. Tomé e Príncipe.

Pelo seu lado a ONU havia reconhecido desde 1962 o CLSTP como único e legítimo representante do povo do arquipélago. Quando surge o 25 de Abril os seus principais dirigentes estavam exilados na República do Gabão onde, em 1972, haviam alargado o conceito de Comitê de Libertação para o de Movimento de Libertação.

No caso da descolonização de S. Tomé também tem particular relevância o papel da visita a Portugal do secretário-geral da ONU, Kurt Waldheim, em agosto de 1974 e das repetidas reuniões de militares em serviço no território. Assim numa reunião realizada em S. Tomé, a 12 de outubro de 1974, os oficiais dos três ramos das Forças Armadas declararam o MLSTP como único interlocutor para as negociações que se avizinham.

Essas negociações principiam no mês seguinte em Argel, tendo sido assinado um Protocolo de Acordo entre o Governo português e o MLSTP em 26 de novembro. Nesse acordo, o Governo português reconhecia o MLSTP como representante legítimo do povo daquele arquipélago. À semelhança dos casos anteriores, os órgãos políticos para o período de transição eram um alto-comissário e um Governo de Transição com competências legislativa e executiva.

Embora oficialmente se trate de um Protocolo de Acordo,8 este diploma está mais aperfeiçoado nos seus termos e no articulado jurídico geral do que os anteriores acordos similares: são dezessete os seus artigos em que, para além dos órgãos políticos de transição, está prevista a constituição de um Banco Central em S. Tomé com o ativo e o passivo do Departamento de S. Tomé e Príncipe do Banco Nacional Ultramarino. A eleição da assembléia representativa do povo de S. Tomé e Príncipe é conformada “com os princípios da Declaração Universal dos Direitos do Homem”. Nota-se nesse protocolo um apuramento das cláusulas da descolonização como resultado dos anteriores acordos celebrados por Portugal na matéria, nomeadamente o Acordo de Lusaca entre Portugal e a Frelimo.

A principal tarefa dos órgãos de transição era a de prepararem as condições para a eleição de uma Assembléia Constituinte. Mas nem em S. Tomé o processo de transição foi isento de peripécias. No interior do próprio governo não se entenderam os membros da Associação Cívica com os membros do MLSTP, e também entre o governo e o alto-comissário português (Pires Veloso) haverá uma prova de força, em março de 1975, sobre a dissolução do contigente militar indígena que o MLSTP pretendia ver constituído em milícia popular antes das eleições, tendo o alto-comissário conseguido impôr o acordado na Argélia sobre essa matéria. Com um corpo eleitoral de cerca de 21 mil membros, procedeu-se à eleição da Assembléia Constituinte que, em 12 de julho de 1975, proclamava a independência da República de S. Tomé e Príncipe.

S. Tomé e Príncipe é um dos primeiros territórios independentes a encetar uma política de aproximação a Portugal pro meio assinatura de vários acordos de cooperação em domínios muito diversos.

MOÇAMBIQUE

As pressões para Portugal clarificar a sua posição quanto à descolonização eram também muito fortes no plano internacional. As dúvidas sobre o comportamento do Estado português na matéria eram tantas que até os governos da Zâmbia e da Tanzânia procuram no verão de 1974 o separatista branco Jorge Jardim para avaliarem as possibilidades de independência mais claras para Moçambique de imediato.

Entre junho e julho de 1974, ou seja nos dois meses de maior indefinição sobre o rumo a dar à questão ultramarina, várias entidades procuram Jorge Jardim, encarando este como alguém que, à sua maneira, pretendia a transferência da soberania de Portugal para Moçambique.

Lisboa está pois, na mira de todos.

Há aqui um conjunto de circunstâncias que concorrem para que os

poderes africanos se auscultem mutuamente perante o que julgam ainda ser a tentativa de protelamento da descolonização por parte do novo poder político instaurado em Portugal.

Ora, esse novo poder político em Portugal atravessava então, e precisamente por causa da natureza da descolonização, uma verdadeira crise que só terminaria com a queda do 1º Governo Provisório prisidido pelo professor Palma Carlos e a formação de um 2º Governo Provisório chefiado por um militar, o coronel Vasco Gonçalves. Mais exatamente era o aparecimento do MFA como agente político determinante. Como já havia concluído Jorge Jardim “o centro de decisão mais válido residia no MFA e fiquei de lhes fazer chegar as nossas recomendações”. 9

O centro principal de decisão era o MFA não só em Portugal como ainda em Moçambique e nos outros territórios ultramarinos.

Em Moçambique o papel dos militares não pára de crescer nesse período. Deste modo o MFA de Moçambique envia, a 22 de julho de 1974, uma mensagem para a Comissão Coordenadora do Movimento em Lisboa recomendando o reconhecimento imediato da Frelimo como legítimo representante do povo moçambicano e do direito desse povo à independência.

Essa reunião realizou-se em Nampula tendo as comissões regionais do

MFA de Cabo Delgado e de Tete anunciado aí que davam um prazo até o fim do mês de julho para se encontrar um acordo global de cessar-fogo com a Frelimo; caso contrário as tropas estacionadas nos referidos distritos imporiam um cessarfogo unilateral. Mais, o pessoal dos helicópteros negava-se a fazer os reabastecimentos das tropas terrestres depois daquele prazo.10

Em Moçambique, como aliás na Guiné, a seleção do interlocutor para as negociações sobre a transferência de soberania foi claramente ditada pela existência de um movimento que lutara militarmente contra a presença do colonialismo português. A Frelimo foi esse movimento para Moçambique. Esse entendimento entre as Forças Armadas portuguesas e a Frelimo deitará por terra a procura de outras vias como as procuradas por Jorge Jardim e por Joana Simião.

O percurso desde o 25 de Abril até ao Acordo de Lusaca de 7 de setembro foi muito acidentado no interior de Moçambique, com o aparecimento de vários movimentos que tentavam tirar à Frelimo pelo menos o exclusivismo de representatividade política no território. Apareceu assim o Grupo Unido de Moçambique (GUMO) que viria a dissolver-se em fins de junho de 74 em razão de sua conhecida proximidade ao governo colonial anterior. Mas também surgem outros agrupamentos que proclamam propósitos semelhantes como o Movimento Federalista de Moçambique ou a Frente Independente de Convergência Ocidental (FICO). Ou os que querem concorrer no terreno próprio à Frelimo como o Movimento de Libertação de Moçambique (MOLIMO).

Com efeito, logo nos princípios de junho, começam em Lusaca encontros exploratórios nos quais participam o ministro português dos Negócios Estrangeiros Mário Soares e Samora Machel, presidente da Frelimo, embora sem resultados conclusivos. Reabrem as hostilidades na Zambézia e seguem-se as peripécias relatadas por Antônio Spínola no seu livro País sem rumo.

Finalmente o MFA, dentro do princípio de que a paz se faz entre

quem está em guerra, decide pelo lado português que as negociações devem fazer-se e dar resultados rápidos.

O Acordo entre Estado Português e a Frelimo, celebrado em Lusaca em 7 de setembro de 1974, é muito claro nos seus objetivos. Trata-se de um “acordo conducente à independência de Moçambique”, embora o seu ponto nº 1 proponha a “transferência progressiva dos poderes” que o Estado detinha. Já o ponto nº 2 decide que “A independência completa de Moçambique será solenemente proclamada em 25 de junho de 1975, dia do aniversário da Fundação Frelimo”.11

O Acordo de Lusaca estabelece os órgãos de governo transitório e oficializa o cessar-fogo já assegurado na prática entre as partes militares.

Os órgãos do governo transitório foram constituídos por um Alto-Comissário, de nomeação do presidente da República Portuguesa, por um Governo de Transição nomeado por acordo entre a Frente de Libertação de Moçambique e o Estado Português, e por uma Comissão Militar Mista nomeada também por acordo entre o Estado Português e a Frente de Libertação de Moçambique (art. 3º.).

Do ponto de vista financeiro têm particular importância os artigos 14 e 16 que tratavam da responsabilização por parte da Frelimo dos compromissos “assumidos pelo Estado Português em nome de Moçambique desde que tenham sido assumidos no efetivo interesse deste território”, e de constituição em Moçambique de um Banco Central que teriam funções de banco emissor sendo para o efeito necessário transferir para aquele Banco, “as atribuições, o ativo e o passivo do Departamento de Moçambique do Banco Nacional Ultramarino”, respectivamente.

Enquanto em 7 de setembro de 1974 se celebra em Lusaca o Acordo entre o Estado Português e a Frente de Libertação de Moçambique para a transferência de soberania, em Lourenço Marques assiste-se à insurreição de forças contrárias ao processo de descolonização, prontamente dominadas pelos oficiais do MFA. Este episódio irá marcar as relações futuras entre militares e entre o MFA e a Frelimo.

Daí por diante fica entendido que o processo de descolonização em Moçambique irá levar a um grande êxodo de portugueses radicados naquele território apesar do artigo 15º. do Acordo de Lusaca.

O general Spínola, insuspeito de qualquer simpatia pelo Acordo de Lusaca não deixou de reconhecer que “apesar de tudo, muito dependeria da forma como o Acordo fosse posto em execução, não só no campo imediato correspondente ao período do Governo de Transição, como depois da independência.”

Ora, o Acordo de Lusaca aparece assinado pelo lado da Frelimo apenas por Samora Machel, enquanto pelo lado português figuram oito nomes representativos do Governo Provisório, do MFA e do Concelho de Estado, pondo-se assim a Frelimo a coberto de qualquer mudança de responsáveis em Lisboa que invalidasse o Acordo.

Mas até à independência, em 25 de setembro de 1975, Samora Machel manteve-se fora do território de Moçambique “permanecendo afastado dos compromissos estabelecidos durante o período de transição”.12

Permanecer afastado dos compromissos estabelecidos durante o período de transição não era de molde a criar um clima de confiança entre os portugueses estabelecidos e residentes em Moçambique: um fator a mais no desencadeamento do amplo fenômeno dos “retornados” que marcará a descolonização de Moçambique e de Angola assim como a caracterização social de Portugal após a independência das colônias. O que se analisará mais adiante.

Além do fenômeno do regeresso a Portugal de milhares de residentes em Moçambique (o Censo Geral da População de 1981 cifrou-os em 164.065), a descolonização desse território traria grandes conseqüências financeiras derivadas dos compromissos anteriores do Estado Português referentes à constituição da barragem de Cabora-Bassa.

Com efeito, os credores do Consórcio, criado por decreto-lei nº 49225 de 4 de setembro de 1969, exigiram que a dívida da hidroelétrica de Cabora-Bassa fosse assumida sob a forma de dívida direta pelo Estado português, o que teve como conseqüência o aumento muito significativo da dívida direta do Estado.

ANGOLA

O processo de descolonização de Angola foi o mais complexo e aquele que mais conseqüências internas e internacionais teve.

Foi o mais complexo, porque do ponto de vista militar a situação não era alarmante embora se mantivessem cerca de 65 mil homens em armas do lado português. Por outro lado, o entendimento entre os movimentos de independência não se apresentava pelas realidades étnicas e pelas rivalidades políticas em que se baseavam: FNLA, UNITA e MPLA eram movimentos armados rivais. No território angolano o elemento branco era significativo e tinha expectativas de poder desempenhar um papel político relevante. Finalmente, a divisão entre os movimentos de libertação veio dar azo a uma internacionalização dos conflitos internos que muito perturbou o acesso à independência de Angola e o período subseqüente, aumentando a rivalidade entre a URSS e os Estados Unidos na África negra.

O processo de descolonização de Angola foi também aquele que maiores preocupações provocou em Portugal. Angola estivera sempre no centro das políticas ultramarinas de Lisboa, e era, em última instância o que motivara a construção da doutrina do Espaço Econômico Português em 1961.

Ora, mais do que a situação militar no território angolano em 1974, o que funcionava mesmo mal, em relação à de articulação entre Portugal e Angola, era o desequilíbrio comercial agravado pelo desequilíbrio da balança de pagamentos portuguesa. O problema dos “atrasados” apenas veio dar uma expressão financeira a essa negativa relação.

Logo em outubro de 1963 Angola foi obrigada a recorrer ao crédito automático do Fundo Monetário da Zona Escudo, e em novembro desse mesmo ano esgotara já os limites máximos do crédito a que tinha direito, tendo a partir de então começado a acumulação de “atrasados”, ou seja, de pagamentos devidos à metrópole e não liquidados.

A partir de 1964, os atrasados cresceram irreversivelmente.

A credibilidade do sistema foi seriamente posta em causa quando o volume

de atrasados se tornou insustentável, na ordem dos 9 milhões de contos, em

1971.13

Essa crescente dificuldade nos pagamentos de Angola à metrópole levou os industriais portugueses a investirem diretamente na produção em Angola, contribuindo assim para uma drenagem de capitais de Portugal para Angola, ao arrepio da industrialização da metrópole.

Acresce que, como esse desequilíbrio na balança de pagamentos se devera à falta de proteção aduaneira no território angolano, as autoridades “provinciais” vão conseguir introduzir em fins de 1971 certas medidas restritivas às importações de bens e serviços metropolitanos (decreto 478/71 de 8 de novembro). O decreto considerava que toda a solução realista do problema seria em bases restritivas.

A grande novidade destas medidas residia na “generalização do registro prévio para as importações de mercadorias que passa a ser extensivo às compras na Metrópole”.14

Estas medidas restritivas são agravadas por um despacho do Governo Geral de Angola de 17 de janeiro de 1972 que insere disposições sobre a concessão de licenças de importação de bens de equipamento, limitando-o nos casos em que a respectiva aquisição não beneficie de financiamentos externos ou de condições de pagamento diferido, assegurado pelo fornecedor.

Deste protecionismo angolano “resultou uma aceleração da tendência centrífuga perante a Metrópole: não sendo a principal fornecedora de bens de equipamento, matérias-primas e produtos intermediários necessários à industrialização de Angola, a política de licenciamento na importação veio, por um lado, reforçar o papel do estrangeiro nas importações angolanas, e, por outro, dar novo âmbito à produção doméstica essencialmente dirigida à sua procura interna”.15

O que precipitou a descolonização de Angola foi assim mais da ordem das razões econômicas do que motivações militares.

É certo que a situação militar no teatro de operações de Angola não era tão grave como o que se vivia em Moçambique e na Guiné. Mas, mesmo assim, o volume dos efetivos militares em Angola não decrescia. Pelo contrário, exigia cada vez mais tropas mobilizadas.

Se antes dos acontecimentos de março de 1961 o efetivo em Angola era de apenas 1.500 soldados metropolitanos, já no fim desse ano estacionam 28.477 homens. Esse número não deixará de subir, com a única exceção do ano de 1972. Assim, o efetivo total das tropas era, em 1973, de 65.592 homens, sendo 27.819 de recrutamento local e 37.773 mobilizados de Portugal.16

Mas se a guerra não colocava qualquer questão urgente como em Moçambique ou na Guiné, o simples fato de haver no território mais de 60 mil homens em armas atribuía ao elemento militar uma posição determinante para o futuro daquele território. E na medida em que eram os oficiais da metrópole que controlavam o dispositivo militar, principalmente naquele território, era necessário contar com ele no período em que a descolonização se ia decidir.

Foi o caso de Angola onde, numa reunião realizada em Luanda em 18 de setembro de 1974, cerca de quinhentos oficiais se pronunciaram no intuito de a descolonização ser protagonizada por aqueles movimentos que haviam adquirido uma “legitimidade revolucionária” pelo fato de terem lutado contra o regime colonialista:

Foi na noite de 18 de setembro que se reuniram no salão nobre do Palácio do Governo cerca de 500 oficiais dos três ramos das forças armadas que vieram a aprovar uma moção por 427 votos a favor, 7 contra e 48 abstenções.

Considerava o seu texto, no essencial… a necessidade de respeitar o já proclamado princípio do direito à autodeterminação e independência dos povos colonizados.17

Esta reunião de militares em Luanda efetuou-se no preciso momento em que em Lisboa o general Spínola pretendia chamar a si o caso especial de Angola.

Exatamente três dias antes efetuara-se na Ilha do Sal um encontro entre o presidente português e o presidente Zairense, Mobutu. Nesse encontro de 15 de setembro teriam sido tratados temas como os de Cabinda, possíveis contactos com Holden Roberto para efeitos de cessar-fogo no norte de Angola, e o comportamento dos ex-gerdarmes catangueses refugiados naquela província.

A entrevista entre Spínola e Mobutu, realizada na ilha do Sal em cabo Verde em 14 de Setembro de 1974, foi interpretada na África como um convite para que a FNLA avançasse sobre Angola, onde entretanto uma sua coluna militar havia sido feita prisioneira na região de Toto pelo exército português. E a declaração feita por Spínola, em 22 de setembro, de que assumiria pessoalmente a responsabilidade da descolonização de Angola terá sido acolhida pelo elemento branco aí residente, pela FNLA e pela Unita.18

O último ato político ligado à descolonização do general Spínola como presidente da República foi exatamente a realização de uma reunião com vários elementos da Província de Angola, realizada no Ministério de Coordenação Interterritorial em 25 de setembro a que também assistiu o ministro Almeida Santos.

Mais do que todo o resto foi a descolonização que dividiu Spínola e o MFA. Essa divisão iniciara-se com a supressão já referida na alínea c do ponto 8 do Programa do MFA, na noite de 25 para 26 de abril, e irá aprofundar-se na reunião da Manutenção Militar em 13 de junho para culminar na demissão do primeiro presidente da Junta de Salvação Nacional em 30 de setembro. Spínola não se entendia com ninguém quer sobre a Guiné, quer sobre Moçambique, quer sobre Angola. Nem interna nem externamente, a sua política encontrava apoios que a viabilizassem.

Os acontecimentos do 28 de setembro de 1974, se desencadeados por razões atinentes à evolução política interna portuguesa, acabaram por ter incidência sobretudo na questão da descolonização de Angola.

O impacto destes acontecimentos em Angola não foi porém abrupto. A FNLA continuou a sua penetração no interior do norte de Angola depois do 28 de setembro e, após conversações com dirigentes do MFA em Kinshasa, aceitou um cessar-fogo com o exército português que entrou em vigor em 15 de outubro.

Não era porém o primeiro movimento guerrilheiro a fazê-lo. Já em 14 de junho de 1974 a Unita, pelo próprio Jonas Savimbi, havia aceito formalmente a suspensão das hostilidades num encontro com representantes das Forças Armadas portuguesas (tenente-coronel Passos Ramos, Major Pezarat Correia, capitão Moreira Dias) na Zona Militar Leste, numa região do rio Lungue-Bungo controlada por forças da Unita.19

A partir daí a Unita pôde desenvolver atividade política naquela parte do território angolano.

Por sua vez, o MPLA, por meio de Agostinho Neto, assinou um cessar-fogo, em 21 de outubro, com uma delegação portuguesa presidida pelo comodoro Leonel Cardoso, e composta pelo major Emílio da Silva, brigadeiro Ferreira de Macedo e major Pezarat Correia. Foi na Chana do Lunhamege, no Leste, perto da fronteira com a Zâmbia.

A partir daí o MPLA vai encetar uma estratégia de implantação política do “poder popular”, organizado em nível de bairro e de empresa e da ocupação de municípios. Depois vai estender as suas atividades aos centros urbanos nas áreas habitacionais dos Quimbundos e dos Bacongos.

Em Kinshasa, a 12 de outubro, autoridades portuguesas têm uma reunião com o presidente do Zaire, Mobutu, e com o presidente do FNLA, Holden Roberto, e chegam a um acordo sobre a cessação das hostilidades a partir do dia 15 de outubro.

Em 28 de outubro uma delegação presidida pelo almirante Rosa Coutinho encontra-se perto da cidade do Luso (atual Luena) com uma delegação da Unita presidida por Jonas Savimbi. A Unita passa a desenvolver a sua atividade em várias cidades incluindo Lobito e Benguela. Em novembro a Unita marca presença em Luanda.

O principal, no entanto, passava por um entendimento entre os três movimentos de libertação, FNLA, MPLA e Unita, pois esses movimentos apareciam como rivais.

A cimeira de Alvor no Algarve foi precedida de um encontro entre os três movimentos FNLA, MPLA e Unita, realizado em Mombaça entre 3 e 5 de janeiro de 1975. Concordam em negociar com Portugal na base de uma plataforma da qual constatavam, como pontos fundamentais, a exclusão de qualquer outra organização angolana na fase de conversações e transferência de soberania, a necessidade de um período de transição, o princípio da manutenção da integridade territorial de Angola, nela incluindo explicitamente o enclave de Cabinda em que forças da FLEC pretendiam a separação de Luanda, e ainda critérios bastante abrangentes para uma futura lei de nacionalidade de cidadãos angolanos.

Só então a Unita foi reconhecida pela Organização de Unidade Africana como movimento de libertação de Angola. “Para isso contribuíra decisivamente a ação portuguesa, conduzida pelos responsáveis governamentais, militares e do MFA de Angola, ao reconhecerem à Unita o mesmo estatuto e legitimidade dos outros dois movimentos, como aliás lhe era devido em face da situação militar objetiva que vigorava em 25 de Abril de 1974”.20

O acordo de Alvor entre o Estado Português e os três movimentos nacionalistas angolanos, assinado em 15 de janeiro de 1975, teve por base a plataforma de compromisso alcançada dez dias antes em Mombaça pelos representantes de Angola.

O acordo de Alvor apenas teve um começo de execução: Portugal nomeou o general da Força Aérea Silva Cardoso para alto-comissário em Angola e a 31 de janeiro tomou posse o Governo de Transição. Depois só houve dificuldades no seu cumprimento.

Discutem-se muito as causas do fracasso do acordo de Alvor e quase se sepultou a primeira e mais viva das evidências: o desentendimento entre os três movimentos de libertação co-signatários do dito Acordo.

Chegou-se a considerar que a própria radicalização política e social em Portugal entre o 11 de março de 1975 e o 25 de novembro desse ano se devia a uma estratégia que visava promover a independência de Angola por meio do MPLA como forma de expandir a influência soviética na África.

Estava-se em pleno período de conflito Leste/Oeste em que os principais protagonistas eram os EUA e a URSS, mas nem tudo o que é verosímil é verdadeiro.

A competição no nível político, de janeiro a maio, ainda pôde ser considerada uma campanha eleitoral num sentido muito amplo. Cada movimento tentava mobilizar a seu favor a maior parte da população, inclusive a população branca, tendo vista as eleições para a futura assembléia constituinte, mas também tendo em conta outros possíveis cenários, como os do confronto violento.

Por outro lado e contrariamente ao estipulado no acordo de Alvor, somente parcelas muito pequenas das Forças Armadas dos três movimentos foram transferidas para as Forças Armadas Integradas que não conseguiram fazer muito mais do que organizar patrulhas mistas, sobretudo na cidade de Luanda.

Cada movimento manteve as suas Forças separadas. Calcula-se que a FNLA tivesse, por altura do acordo de Alvor, cerca de 25 mil soldados; o MPLA perto de 6 mil assim como a Unita.21

A internacionalização do conflito angolano em meados de 1975 teve uma característica curiosa que foi a vontade manifesta das partes em afastar Portugal da condução do processo político no período de transição para a independência.

Assim, entre 16 de 21 de junho de 1975, vão reunir-se em Nakuru, no Quênia, os presidentes dos três movimentos signatários do Acordo de Alvor na ausência de qualquer representante português o que contrariava o espírito do artigo58 do acordo de Alvor, segundo o qual “Quaisquer questões que surjam na interpretação e na aplicação do presente acordo e que não possam ser solucionadas nos termos do artigo 27 serão resolvidas por via negociada entre o Governo Português e os movimentos de libertação”.

Ora, as conclusões da cimeira de Nakuru omitem qualquer referência ao papel de Portugal no período de transição e incluem mesmo disposições que contrariavam o acordo de Alvor como a medida preconizada de se constituir um Exército Nacional angolano dada a “ineficácia até aqui verificada nas Forças Militares Mistas”.

As conclusões da cimeira de Nakuru são porém mais interessantes de um ponto de vista histórico por reconhecerem já então “a introdução pelos Movimentos de Libertação de grandes quantidades de armamento”.

Quem primeiro recebeu ajuda externa em Angola capaz de destroçar o laborioso acordo de Alvor tem sido uma discussão próxima do debate sobre quem nasceu antes se a galinha ou o ovo.22

Fontes norte-americanas variadas indicam que a FNLA recebeu 300 mil dólares da CIA, no início do ano de 1975, via Zaire,23 e depois teria usufruído de ajudas em armamento, homens e outros recursos logísticos.

As mesmas fontes indicam que a partir de abril de 1975 o MPLA começou a receber armamento pesado da Rússia e de outros países da Europa de Leste que eram transportados em barcos iugoslavos até Brazaville e depois encaminhados para Angola. Desde o momento em que o MPLA passou a dominar a cidade e o porto de Luanda, esse armamento passou também a entrar por aí.

John Stockwell que foi um dos responsáveis pela ação da CIA em Angola, nessa altura, revelou mais tarde uma cronologia dos diferentes apoios externos aos movimentos angolanos:24

• em maio de 1974, a China envia um carregamento de 450 toneladas de armas para a FNLA e 112 conselheiros militares;

• em julho de 1974, a CIA inicia o financiamento do FNLA de Holden Roberto;

• em fins de 1874, os soviéticos começaram a enviar armas para o MPLA, e vão intensificar essas remessas de armamento a partir de março de 1975;

• em julho de 1975, os EUA enviam armas para Angola e uma ajuda de 14 milhões de dólares é aprovada para apoiar a FNLA e a Unita;

Em 9 de julho de 1975, o MPLA lançou a “segunda batalha de Luanda”.25 Por meio de uma ação combinada das suas forças regulares, as FAPLA (Forças Armadas populares de Libertação de Angola), e da milícia da capital angolana. O conflito angolano entra, então, numa fase de internacionalização cada vez mais acentuada: a FNLA e a Unita recebem ajudas dos EUA, Zaire e África do Sul; do MPLA dos soviéticos, países da Europa de Leste, Cuba e Congo-Brazza.

Em 22 de agosto de 1975 tendo em conta a evolução da situação em Angola para um autêntico estado de guerra, o V Governo Provisório, o último presidido pelo general Vasco Gonçalves, declara suspensa a vigência do acordo de Alvor no respeitante aos orgãos de Governo de Angola (decreto-lei nº. 458- a/75).

Portugal não conseguira impedir a internacionalização do conflito angolano. No mês de outubro essa internacionalização do conflito em Angola deixa de ser caracterizada apenas pela ajuda efetiva de tropas estrangeiras em território angolano: uma coluna, constituída majoritamente por tropas regulares sul-africanas, entrou em Angola proveniente do então sudoeste africano em meados desse mês. “Altamente móvel, dispondo de uma logística sólida, e equipada num nível técnico superior ao que os três movimentos haviam alcançado naquela altura, esta coluna varreu literalmente o MPLA do seu caminho. No início de novembro, chegou à cidade de Lobito, permitindo assim que a Unita e os seus aliados reocupassem todo o território a oeste e a sul do Huambo que haviam anteriormente perdido.

Ao mesmo tempo a FNLA lançou uma nova ofensiva ao norte, e conseguiu chegar até à periferia de Luanda...”.26

Em data não determinada, mas possivelmente a partir de outubro de 1975, começou a chegar pessoal cubano e mais material de guerra soviético para apoiar o MPLA.

Cerca de 15 mil homens passaram a constituir o exército regular afeto ao MPLA, dotado de carros de combate soviéticos T-34 e T-54, de peças de artilharia e de mísseis, e ainda de aviões Mig-21.

As autoridades dos Estados Unidos estavam divididas quanto ao tipo de apoio a fornecer aos movimentos tidos como mais pró-ocidentais como o FNLA e a Unita: sobretudo o Congresso manisfestava-se reticente em continuar a apoiar as operações secretas da CIA, enquanto Kissinger havia adotado a postura de ver os acontecimentos de Angola do prisma do conflito Leste/Oeste já um pouco tarde e perante opiniões contraditórias dos seus conselheiros.27

A atitude das autoridades portuguesas, pelo seu lado, acabou por favorecer objetivamente a estratégia do MPLA, embora o fato de este movimento se ter conseguido impor em Luanda tenha sido determinante para aquela posição. O próprio fato de Luanda ser a capital política e administrativa e de possuir um porto e um aeroporto internacionais ajudou a essa convergência final.

Mesmo o fenômeno de retorno da população branca por uma ponte aérea cujo terminal era Luanda favoreceu essa coexistência com o poder do MPLA na capital, e até levou a ameaças em relação aos outros movimentos. Assim a FNLA terá sido avisada que as autoridades militares portuguesas reagiriam com todos os meios à sua disposição caso alguma Força desse movimento pretendesse ocupar Luanda antes do dia da independência, data limite para o funcionamento da ponte aérea sob responsabilidade portuguesa.

E, com efeito, tanto o alto-comissário almirante Leonel Cardoso como o restante pessoal português deixaram Luanda no dia 11 de novembro de 1975, transferindo a soberania para o Estado de Angola e não tendo reconhecido qualquer governo pois na altura declararam-se dois: um, sediado em Luanda, tomou o nome de Governo da República Popular de Angola e era uma emanação do MPLA; outro, sediado no Huambo (Nova Lisboa), apoiado pela FNLA e pela Unita, proclamou a República Democrática de Angola, de efêmera duração.

O governo português resolveu não reconhecer nenhum dos governos, o que era aliás a posição da OUA naquela emergência, e assim se manteve até 22 de fevereiro de 1976, quando o VI Governo Provisório, muito pressionado pelo presidente da República Costa Gomes e pelo ministro dos Negócios Estrangeiros Melo Antunes, resolveu reconhecer o governo do MPLA em Luanda. Como se escrevia num documento doutrinal a esse propósito:

O reconhecimento da República Popular de Angola é a única forma de garantir os direitos e expectativas dos refugiados e de assegurar as negociações relativas ao contencioso existente entre os dois Estados, derivado da situação colonial, decorram de maneira mais favorável aos interesses nacionais.28

Além disso o MPLA havia dado provas de pretender e de defender a integridade territorial de Angola (como no caso de Cabinda e que coadjuvaram a resposta dos militares portugueses à FLEC em várias ocasiões).

Por muito tempo se julgou que a posição portuguesa, na ocasião, fora ditada por pretensas afinidades ideológicas, mas como se verá mais adiante, a propósito das conseqüências da descolonização, essa explicação não dá conta dos múltiplos aspectos em que o acesso à independência de Angola se processou.

OS CASOS DA ÍNDIA, TIMOR E MACAU

Foram atípicos, no processo geral da descolonização saída do movimento histórico do 25 de Abril, três casos diferentes de cessação de soberania portuguesa nos territórios da Índia, de Timor e de Macau.

O caso mais difícil de analisar é o de Timor por não ser claro o que se passou naquela ilha no verão de 1975 e por suscitar as maiores polêmicas sobre as atitudes das autoridades portuguesas.

Por causa de Timor, o Estado português cortou relações diplomáticas com a Indonésia, em dezembro de 1975, no seguimento da invasão de Timor-Leste por tropas daquele país. Ficou assim incompleto o processo de descolonização daquele território.

CONSEQÜÊNCIAS INTERNACIONAIS

Lisboa, desde a década de 1960, mais do que capital de um império colonial, estava subjugada por este, gastando na defesa diplomática e militar da manutenção da soberania política o melhor do seu tempo, fazenda e energia.

Mas, se prestarmos atenção quer ao programa do MFA quer às teses federalistas do general Spínola, mesmo depois do 25 de Abril, muitas e diversas forças nacionais apostaram na continuação de uma política integrada entre Lisboa, Bissau, Praia, Maputo e Luanda. O que diferia, e era o essencial, era o peso relativo atribuído às capitais referidas: Spínola tentando libertar Lisboa do beco em que a haviam introduzido Salazar e Caetano e querendo dar-lhe papel determinante na condução da nova comunidade federativa; Melo Antunes desejando a emergência de um eixo tropical não alinhado constituído pela dupla Luanda-Maputo em que Lisboa se deveria apoiar. Vasco Gonçalves aceitando teses pró-soviéticas de uma descolonização da qual resultaria o enquadramento de Lisboa numa teia tecida de Moscou a Havana passando por Maputo e Luanda.

Embora sem se confundirem, essas diferentes posições tinham em comum uma visão pessimista sobre a integração mais acelerada de Portugal na CEE.

De uma forma geral, a descolonização portuguesa foi encarada com simpatia pela comunidade internacional sem que tivesse notado um movimento de positiva solidariedade para com este país em transe tão revolucionário. O auxílio prestado na ponte aérea entre Angola e Portugal se beneficiou as pessoas que queriam partir também ajudou a desertificar África do elemento branco, e poderia ter introduzido na metrópole elementos de pertubação social e política que, ao fim e ao cabo, não se produziram.

Pode-se concluir do testemunho do general Spínola um certo alheamento do então presidente Richard Nixon dos EUA diante dos problemas decorrentes, para Portugal, do processo de descolonização e a fraca importância que atribuía a Portugal na transição para a independência dos territórios africanos. Diferente parece ter sido a atitude de Moscou que terá empregado esforços, também em Lisboa, no sentido de o acesso à independência das colônias portuguesas se fazer num sentido que lhe fosse mais favorável.

Com efeito, no seguimento do estabelecimento de algumas zonas de influência soviética na África, primeiro na Somália, depois na Etiópia e fundamentalmente na república do Congo-Brazzaville, Moscou vai-se interessar mais empenhadamente na descolonização portuguesa. Essa penetração foi facilitada pelos apoios que a URSS havia dado aos movimentos de libertação durante a luta armadacontra o colonialismo português, apoio tanto mais fácil quanto Moscou não tinha sequer relações diplomáticas com Portugal nem havia efetuado investimento na zona, o que sempre dificultava a liberdade de manobra de outras potências diante de Lisboa.

Aliás um dos argumentos com que os responsáveis pela política colonialista portuguesa procuravam sensibilizar os governos dos países ocidentais aliados consistia em afirmar que caso Portugal saísse da África seriam os soviéticos que tomariam o seu lugar.

Assim, desde 1960 que a diplomacia britânica considerava “inevitável um aumento da influência comunista em certas áreas da África”, mas não considerava que essa presença pudesse criar raízes na medida em que nas antigas potências coloniais se fomentassem laços comuns com os novos países independentes baseados na língua, na educação, na cultura, nas práticas administrativas e no comércio. Era o que recomendava tranquilamente o funcionário do Foreign Office que preparava, no verão de 1960, umas conversações quadripartidas sobre a África entre Portugal, Bélgica, França

e reino Unido, que aliás foram adiadas por desinteresse dos três últimos países. Era já o isolamento de fato para Portugal na questão africana.

Ora, após a descolonização de 1975, uma das primeiras questões que se colocaram aos novos responsáveis portugueses foi a de compreender qual a natureza de penetração russa em África.

Portugal aliás não era virgem na gestão de confrontos entre potências continentais na África Austral

Quando a Alemanha bismarquiana e sobretudo pós-bismarquiana revelou algum interesse pela penetração na África, logo houve quem, em Portugal, festejasse o aparecimento ultramarino da potência continental e se quisesse apoiar nela. Barros Gomes simboliza essa tendência. Porém a natureza da expansão alemã na África revelou-se adventícia e verificou-se precária. Seria assim a natureza da influência russa nas ex-colônias portuguesas como o previra desde 1960 a diplomacia britânica?

Houve quem afirmasse que o comportamento revolucionário do PCP em 1974-1975 se devera a esses apetites soviéticos pela África de expressão portuguesa, apresentando-se como fato a merecer reflexão a forma como, conseguida a independência de Angola em 11 de novembro de 1975, quando em Luanda se estabelecera um governo do MPLA – movimento cujas ligações com Moscou eram conhecidas, – logo a 25 de novembro de 1975 o PCP se entrega em Lisboa às delícias da democracia parlamentar que antes repudiara com veemência e alguma brutalidade.

Esta tese foi veiculada sobretudo nos meios da produção teórica estratégica mais tradicional, nomeadamente entre os estrategos da ditadura salazarista e os estrategos oficiais dos países ocidentais: residia na importância geoestratégica em atribuir à África Austral a perspectiva de uma generalização do conflito Leste/Oeste. Para os portugueses essa importância era decisiva (controle da rota do Cabo, acesso a matérias-primas fundamentais…) pelo que os russos sempre dariam prioridade a uma operação de cerco à Europa Ocidental via África, enquanto os pensadores aliados mantinham as posições que haviam determinado a articulação de missões da Aliança Atlântica em certas áreas localizadas da Europa Central, do Mediterrâneo e do Atlântico Norte.

Foi necessário deixar correr algum tempo para se verificar que o interesse russo não ultrapassava facilmente o grau de aproveitamento de alguns “alvos de oportunidade” para empregar um conceito desses meios de pensamento estratégico, conceito que significa não ser aí que se exerce o esforço principal.

Não sendo do interesse português acentuar a emergência de uma grande potência hegemônica na região da África Austral, a política externa portuguesa orientou-se empiricamente para os seguintes objetivos naquela região depois da descolonização:

• acentuar a influência russa mas sem pretender eliminá-la, dado as circunstâncias não permitirem a Moscou o estabelecimento de uma hegemonia duradoura;

• promover soluções que reduzissem as probabilidades de conflitos armados na área;

• manter a sua margem de manobra entre diversas entidades ou estados interessados direta ou indiretamente na região, de modo a não facilitar o aparecimento de uma potência regional hegemônica;

• facilitar acordos entre a RP de Moçambique e a República da África do Sul de forma a permitir a venda e a cobrança de energia elétrica fornecida pelo funcionamento da barragem de Cabora Bassa, cuja construção e manutenção onerava pesadamente o serviço de dívida externa do Estado Português;

• apoiar a integridade territorial dos novos Estados assim como o estabelecimento da língua portuguesa como língua oficial;

• promover uma política de cooperação com os PALOP em nível bilateral ou multilateral;

O princípio da década de 1980, com a vitória do presidente republicano Ronald Regan nos Estados Unidos, vai presenciar um aumento da violência armada na África Austral, que passará a ter uma leitura mais direta pelas grelhas de interpretação do conflito Leste/Oeste, sobretudo em Angola. Mas entre 1975 e 1980 a ação dos Estados Unidos não foi determinante na evolução da África Austral, embora o fato de haver tropas cubanas em Angola tivesse sempre constituído um fato que pesou nas relações entre Washington e Luanda a ponto de as não estabelecerem diplomaticamente.

Um dado extremamente importante foi o fato de todas as ex-colônias portuguesas se terem determinado a aderir à Convenção de Lomé II que regia a cooperação Norte/Sul entre a Comunidade Européia e o conjunto de países da África, Caraíbas e Pacífico (ACP), a maior parte dos quais fora colônia de um dos Estados membros da CEE, criando assim um espaço econômico entre a CEE e muitos países africanos, entre os quais todos os PALOP.

ASPECTOS POLÍTICOS

O Estado português teve que definir uma política imediata em relação à África depois das transferências de soberania, tantos eram os problemas a resolver: retorno de nacionais, segurança dos portugueses que pretendiam continuar nos territórios agora independentes, interesses econômicos e financeiros a defender para não onerar ainda mais o povo português com as seqüelas da organização e da guerra, diversificação dos mercados tradicionais de abastecimento em café, açúcar, algodão, petróleo etc.

Tratava-se, pois, de definir qual o lugar que as relações com África ocupariam na estrutura das relações internacionais de Portugal sem colônias.

A primeira preocupação foi a de estabelecer acordos de cooperação entre Portugal e as ex-colônias, geralmente negociados durante o processo de acesso à independência daqueles territórios.

Assim, a 22 de junho de 1975, é assinado em Lisboa um Acordo de Cooperação cientifíca e técnica entre Portugal e a República da Guiné-Bissau. Em 5 de julho, é concluído, na cidade da Praia, um Acordo Geral de Cooperação e Amizade com a república de S. Tomé e Príncipe que acedia naquele mesmo dia à independência. A República Popular de Moçambique, cuja independência fora proclamada em 25 de setembro, assina, a 2 de outubro, um Acordo de Cooperação com Portugal.

Em relação a Angola, o processo de normalização diplomática foi mais complexo e moroso. Assistiu-se primeiro às dificuldades portuguesas na definição de um critério para o reconhecimento do governo angolano logo depois da independência, reconhecimento esse que aconteceu em fevereiro de 1976, ou seja, três meses depois da passagem formal dos poderes em Luanda. Em maio daquele ano era a República Popular de Angola que rompia as relações diplomáticas, para só reatar em outubro, depois de um encontro entre os Ministros dos Negócios Estrangeiros dos dois países em Cabo Verde. Mesmo assim demoram os angolanos a enviar um embaixador-residente para Lisboa, enquanto o Governo Português apóia a entrada da República Popular de Angola nas Nações Unidas, o que ocorre durante a 31ª Assembléia Geral daquela organização em 1976.

Só com o encontro entre o general Eanes e Agostinho Neto, em maio de 1978, ocorrido em Bissau, se enceta um período de maior colaboração entre os dois Estados, formalizada no Acordo Geral de Cooperação e Amizade datado daquele ano.

O Estado português teve ainda que criar rapidamente novos departamentos e instrumentos políticos e diplomáticos para essas novas relações.

Criou-se assim, em 4 de setembro de 1975, na orgânica do IV Governo Provisório, o Ministério da Cooperação que seria extinto em julho de 1976 com o advento do 1º Governo Constitucional. No 1º Governo Constitucional, o MNE dota-se de um Gabinete Coordenador para a Cooperação que vigorou até ao estabelecimento, em 1980, num governo da Aliança Democrática, de uma Direção-Geral para a Cooperação. Por outro lado, elaboram-se vários estatutos para o Instituto Português para a Cooperação, uma espécie de “holding” dos interesses econômicos e financeiros portugueses na África.

Como já referido, Portugal passou a ser um país doador em relação à cooperação internacional, novidade absoluta para o Estado português.

A cooperação, depois da independência das colônias, foi, pois, uma novidade como vertente das ações externas do Estado português. Em termos internacionais está consagrado que a cooperação se destina a apoiar o desenvolvimento dos Estados, centrado no homem e na cultura de cada povo, tendo por objetivo promover e acelerar esse desenvolvimento nos domínios econômico, cultural e social, aprofundando e diversificando as relações entre Estados beneficiados e doadores num espírito de solidariedade e interesse mútuo, segundo a Convenção de Lomé que liga os países da Comunidade Européia ao conjunto dos países menos desenvolvidos da África, Caraíbas e Pacífico (ACP).

Ponto importante é o que determina que o apoio do estado doador só será concedido a pedido do estado beneficiário que terá todo o direito de determinar as suas opções políticas, sociais, econômicas e culturais.

Embora dedicando escassas verbas governamentais para o efeito, a cooperação entre Portugal e os PALOP caracterizou o novo tipo de relações entre as partes e permitiu manter o contato necessário de estado a estado durante o delicado período imediatamente posterior à descolonização. E nem sempre foram fáceis as relações políticas entre Portugal e os novos países de expressão portuguesa.

Desde logo as relações políticas foram mais estreitas com Cabo Verde e Guiné-Bissau, seguindo-se depois S. Tomé e Príncipe. Nenhuma dificuldade houve no início das relações diplomáticas e mesmo na cooperação militar foi rápido o entendimento com as Forças Armadas portuguesas, nomeadamente nos domínios da balizagem de costas, faróis, apetrechamento e dragagem de portos, treino de pessoal etc. A República da Guiné-Bissau pedirá o apoio português para a demarcação dos limites das suas águas territoriais num difirendo que a opôs à Guiné-Conakry.

E quando, em outubro de 1978, Portugal formalizou a sua candidatura a membro não permanente do Concelho de Segurança, esses países apoiaram a sua candidatura contra a de Malta.

Um ponto de encontro na política externa de Portugal e das ex-colônias foi a promoção e a maior visibilidade da língua portuguesa na cena internacional. De fato, enquanto não foram independentes aqueles territórios, eram dois os Estados que falavam português. Depois do acesso à independência dos territórios africanos, passaram a sete os Estados de língua oficial portuguesa presentes em três continentes: Europa, América do Sul e África. Estavam criadas as condições políticas para a promoção do português como língua internacional.

CONCLUSÃO

Embora o desencadeador do movimento do 25 de Abril se deva, em primeiro lugar, à necessidade de resolver a questão colonial, esta efetivamente só domina a cena política portuguesa até os primeiros meses de 1975. Se houver que utilizar um acontecimento histórico como marco, pode-se erigir

a cimeira de Alvor em 15 de janeiro de 1975. A partir daí, – e contrariando muitas opiniões sobre a influência determinante do processo de transferência de soberania de Portugal para Angola no curso do poder político em Lisboa –, o centro das preocupações dos portugueses tornou-se mesmo o Portugal europeu. Para a opinião pública, nessa altura, o papel de Portugal na descolonização esgotava-se nos diplomas que formalizavam o tempo e o modo de transferência de soberania. De certa maneira, raramente a metrópole foi tão egocêntrica como durante o processo de descolonização.

A evolução do poder político em Portugal é determinada essencialmente pela descolonização entre o 25 de Abril de 1974 e 28 de setembro inclusive. Já os acontecimentos cristalizados por volta do 11 de março de 1975 têm um forte componente português e europeu.

Mas se essa interpretação é genericamente correta, e só ela permitiu que a esta altura se apresentasse a descolonização saída do 25 de Abril como uma “descolonização exemplar“, isso não significa que as conseqüências da descolonização não tenham afetado a sociedade portuguesa durante muito mais tempo e de forma muito profunda, durável e variada.

As conseqüências imediatas foram de ordem militar, social e econômica.

Em 1990 as relações públicas do Estado-Maior-General das Forças Armadas revelaram à agência noticiosa Lusa os seus números oficiais sobre as baixas sofridas durante “as campanhas de África”, entre 1961 e 1975.

Segundo Manuel Carlos Freire, daquela agência, o número total de vítimas fatais durante a guerra na África foi de 8.831. O maior número de mortos pertenceu ao Exército (8.290) seguindo-se a Força Aérea (346) e a Marinha (195).

Relativamente ao número de feridos, as estimativas apontam para cerca de 30 mil, sendo o exército mais atingido, com mais de 25 mil feridos.

Dos totais anuais de vítimas fatais verifica-se que 1973 foi o ano em que as Forças Armadas tiveram maior número de mortos (Exército, 856; FAP, 27; Marinha, 40). A pressão sobre os militares que, entre 1961 e 1974, estiveram mobilizados na África terá sido de 117 mil efetivos.

Assim, calcula-se que o número total aproximado de militares que participaram nos três principais teatros de operações na África (Guiné, Angola e Moçambique) terá sido de 1.368.900 (um milhão, trezentos e sessenta e oito mil e novecentos indivíduos).

Tendo sido a guerra colonial conduzida pelas Forças Armadas da Metrópole, os colonos radicados na África só tiveram duas soluções após a decisão de descolonizar. Ou se colocavam sob a proteção dos partidos africanos ou preferiam regressar à metrópole, vista esta como Mãe Pátria para dar a certas expressões consagradas o seu verdadeiro sentido.

O resultado de todas essas realidades e contigências foi o fenômeno social do retorno de cerca de meio milhar de residentes nos territórios africanos para Portugal, num concentrado período de tempo pouco superior a um ano. O fenômeno do retorno feriu tanto a sensibilidade contemporânea dos portugueses que o seu número se encontra quantificado por órgãos oficiais do Estado.

O Recenseamento de 1981, por perguntar a residência dos inquiridos em 31 de dezembro de 1973, apurou a existência, em Portugal, de 505.078 cidadãos que regressaram de África depois daquela data.

Que conseqüências teve esse retorno sobre a geografia humana do território metropolitano?

Segundo dados elaborados pelo Instituto Nacional de Estatística, no censo de 1981, o total de “retornados” terá sido de 505.078, sendo 309.058 provenientes de Angola e 164.065 de Moçambique, de fato as duas colônias de “povoamento”. Dos valores obtidos pelo Recenseamento Geral da População de 1981 ressaltam os seguintes indicadores: quase dois terços dos retornados vieram de Angola e os retornados, nascidos em Portugal, eram originários majoritariamente das áreas urbano-industriais de Lisboa e do Porto (cerca de 23%) e das regiões deprimidas do norte e centro interiores

do país (34%).

O impacto demográfico do fenômeno do retorno da África, entre 1974 e 1976, pode ser quantitativamente medido pelo Recenseamento Geral da população, ocorrido em março de 1981, quando todo, Portugal se estabilizava depois do período revolucionário.

A população total de Portugal ficou cifrada em 9.833.014 (nove milhões, oitocentos e trinta e três mil e catorze indivíduos), sendo 505.078 (quinhentos e cinco mil setenta e oito) considerados retornados.

Mas não foram só os expatriados que regressaram num lapso de tempo intenso e condensado. Também os dispositivos dos acordos de transferência de soberania não foram muito favoráveis a uma diluição no tempo do retorno das tropas.

Do ponto de vista econômico quando se verificou a descolonização já a efêmera quimera política do mercado comum português estava destruída e nenhum responsável em Lisboa, ou em qualquer outro lado, ousava retomar esse objetivo criado pela pressão doutrinária, presente no Decretolei 44.016 de 8 de novembro de 1961, que instituía uma zona de comércio livre entre Portugal e o Ultramar.

As trocas comerciais entre Portugal e os territórios ultramarinos não ultrapassaram os 13% do total da balança comercial da metrópole em

1973, com esta já pesadamente envolvida no intercâmbio com os países europeus da EFTA e da CEE. E o problema financeiro que os “atrasados” das colônias representavam não era de molde a encorajar o aumento das exportações para a África portuguesa. Esses territórios vão aliás implementar medidas protecionistas nos inícios dos anos 70.

Essa redução das trocas comerciais entre Portugal e as suas colônias mais realçava a desproporção existente com o aumento constante das despesas militares devidas ao esforço de guerra na África.

Assim, e observando a evolução das despesas militares em relação ao total das despesas públicas, em porcentagem, verificamos que, durante a década de 1960, elas passam de cerca de 25%, no início da década, para cerca de 40% no fim. Até 1974 essa porcentagem não é nunca inferior a 35%, para, entre 1974 e 1980, decaír abaixo dos 10% e se situar à volta dos 6,5% em 1985. Em relação ao PIB, a porcentagem das despesas militares passa de 6,85, em 1974, para 2,44% em 1985.29

Do ponto de vista comercial, a principal conseqüência da descolonização foi a diminuição drástica das exportações dos territórios descolonizados para Portugal, que caíram para valores percentuais abaixo de 1%.

Quanto às exportações de Portugal para os PALOP, a evolução depois das independências, se bem que irregular, demonstra uma amplitude situada entre os 5% do total das exportações portuguesas em valor (1982) e o teto dos 10%.

Esse desequilíbrio na balança comercial entre Portugal e os PALOP, obrigou o Estado português a conceder linhas de crédito à exportação para as mercadorias com destino a esse grupo de países, durante o período em análise.

Portugal ocupa na balança comercial com os PALOP um lugar mais importante como fornecedor do que como comprador. A importância dos PALOP na balança comercial portuguesa é muito menor do que a de Portugal na balança comercial daqueles países.

Mas Portugal como país exportador sentiu menos os efeitos da descolonização. A balança comercial entre Portugal e os antigos países da zona escudo manteve-se excedentária desde 1976, sendo a taxa de cobertura favorável a Portugal.

Angola, por exemplo, continuou como o quarto cliente português após o Reino Unido, a RFA e a França até entrada de Portugal na Comunidade Européia.

No que se refere às exportações, Portugal ocupava o segundo lugar entre os fornecedores de Moçambique no quadro dos países da OCDE e o quinto em geral, e contribuía com 5,8% do total das importações moçambicanas entre 1976 e 1980. No período quinquenal seguinte, 1980-1985, as exportações portuguesas representavam 7,6% das importações do Estado moçambicano, mantendo o segundo lugar como fornecedor depois da República Federal da Alemanha. Na década de 1980 o saldo da balança comercial acumulado em favor de Portugal nas suas transações com Moçambique foi superior a 31 milhões de contos.

De uma maneira geral, Portugal aparece como parceiro comercial muito importante para os PALOP´s em todo este período, sobretudo como fornecedor já que como cliente a sua posição desceu depois da descolonização. Alguém já chamou “ciclo comercial” a este período posterior às independências.

Os interesses econômicos de Portugal nas colônias não se resumiam, no entanto, aos seus aspectos comerciais. A vertente investimento tinha um significado tal que, por altura da visita a Lisboa do secretário-geral da ONU, Kurt Waldhein, no verão de 1974, foram os investimentos privados portugueses, efetuados em Angola e em Moçambique, estimados em 190 milhões de contos e em 150 milhões de contos respectivamente, em documentos preparados para conversações entre as autoridades portuguesas e o secretário-geral da ONU.

Pode-se mesmo interpretar as nacionalizações, nomeadamente as dos Bancos, efetuadas em Portugal a partir de março de 1975, como uma medida capaz de facilitar um certo tipo de descolonização, e colocar do lado português, como interlocutor dos novos Estados, não uma multidão de interesses privados, mas o próprio Estado português. As relações econômicas entre Portugal e esse conjunto de países tornaram-se assim, no período posterior à descolonização, eminentemente políticas, tanto mais que às nacionalizações efetuadas pelos governos em Lisboa se seguiram as nacionalizações operadas pelos governos na África. Por causa dessas nacionalizações, efetuadas tanto em Portugal como nos novos países africanos, as questões econômicas situaram-se freqüentemente no nível das relações políticas entre os Estados.

NOTAS

1. LOURENÇO, E., 1978, p.47.

2. GOMES, C. 1979, p.17.

3. No caso de Angola só mais tarde a OUA reconhecerá também a UNITA como movimento

de independência.

4. SPÍNOLA, A., 1978, p.270.

5. Ibidem, p.271.

6. SOARES, M., 1976. p.36.

7. Moção aprovada pelo MFA da Guiné. Reunião de 1º. de julho de 1974 (Documento datilografado de quatro páginas, consultado no Centro de Documentação sobre o 25 de Abril. Universidade de Coimbra).

8. DG, nº. 293, 3º supl., 1ª. série de 17.12.1974.

9. JARDIM, J., 1976, p.278.

10. SPÍNOLA, A., op. cit., p.437-438.

11. DG, nº. 210, 2º. supl., 1ª. série de 9 de setembro de 1974.

12. Mozambique a Country Study, Federal Research Division. 3. ed. Washington: Library of

Congress, 1985. p.58

13. NETO, A. M., 1991.

14. FERREIRA, M. E., 1990, p.131.

15. Ibidem, p.139

16. Estado Maior do Exército, Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (19611974). Lisboa, v. 1, 1988, p.260-261.

17. HEIMER, F. W., 1980, p.93.

18. Ibidem, 1980, p.63.

19. CORREIA, P. P., 1991, p.98.

20. Ibidem, p.105-106.

21. HEIMER, F. W., op. cit., p.76.

22. KISSINGER, W. I. A biography. London, Boston: Faber and Faber, 1992.

23. BELL, C. The diplomacy of detente. The Kissinger Era. London: M. Robertson, 1877. p.173.

24. Ver STOCKELL, J. A CIA contra Angola. Lisboa: Ulmeiro, 1979.

25. HEIMER, F. W., op. cit., p.81.

26. Ibidem, p.84.

27. ISAACSON, op. cit., p.673-685.

28. Memorando de 3 páginas, datilografado, arquivado no Centro de Documentação de 25 de

Abril, Universidade de Coimbra.

29. Cf. Ministério da Defesa Nacional, Livro branco da defesa nacional, MDN, 1986, p.150-1.


José Medeiros Ferreira

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