sábado, 26 de janeiro de 2008

A síndrome do obscurantismo

ROBERT KURZ

Na imagem que faz de si mesmo, o Ocidente é um mundo livre, democrático e racional, ou seja, o melhor dos mundos possíveis. Do seu ponto de vista, esse mundo é pragmático e aberto, sem pretensões utópicas ou totalitárias. Cada um deve "ser feliz segundo seu próprio modo de ser, de acordo com a promessa de tolerância feita pelo Iluminismo europeu.
Os representantes desse mundo se dizem realistas. Afirmam que suas instituições, seu pensamento e sua ação encontram-se em harmonia com as "leis naturais da sociedade, com a "realidade atual. O socialismo, pelo que ouvimos, desmoronou porque não era realista. Junto com o socialismo, foi definitivamente enterrada toda utopia de uma mudança fundamental da sociedade. E os antigos críticos do "way of life ocidental agora se acotovelam nas bilheterias do "realismo para comprarem a tempo seu ingresso na economia de mercado globalizada.
Esse idílio da tolerância e da democracia econômica mundial, no entanto, produziu um novo inimigo. Com a morte do socialismo, entrou em cena o fundamentalismo religioso. O fundamentalismo é feio, muito mais feio do que o socialismo jamais poderia sê-lo. Aos olhos dos ideólogos ocidentais, ele possui feições árabes muito acentuadas. Nos últimos anos, o Pentágono começou a conceber o fundamentalismo islâmico como um substituto para o papel de inimigo histórico.
Como nos tempos da Guerra Fria, são subvencionadas na nova constelação mundial todas as forças políticas que se declaram contra o fundamentalismo e a favor do Ocidente, por mais corruptos e cruéis que sejam os regimes à frente de tais forças.
Mas o novo cálculo estratégico com que os especialistas ocidentais procuram justificar sua existência insiste em deixar resto. Ao contrário do socialismo, o fundamentalismo não é mais um adversário racional, politicamente definido e previsível em suas ações. Além de não possuir um centro de atividades nitidamente localizável no mundo, ele também não se restringe apenas ao islamismo. Em muitas regiões da África não-muçulmana e em toda a América Latina, seitas fundamentalistas cristãs assumiram nos últimos anos o lugar antes ocupado pelos movimentos socialistas.
A mesma ilusão social do fundamentalismo religioso floresce também nos próprios centros econômicos ocidentais. Foi um choque para os Estados Unidos descobrirem que os responsáveis pelo devastador atentado a bomba em Oklahoma City não eram terroristas islâmicos e estrangeiros, mas sim cidadãos brancos e norte-americanos, adeptos de uma facção ideológica cristã.
E quem poderia imaginar que num país como o Japão, considerado o aluno exemplar do sucesso econômico, um movimento radical comandado que prega o final dos tempos pudesse influenciar tantas pessoas e até aliciar adeptos no Exército japonês?
Os fanáticos religiosos tomam a ofensiva por toda parte. De onde eles vêm? Com certeza não de outros planetas. Vêm justamente do interior do próprio mundo dominado pela economia de mercado. O "realismo neoliberal, na verdade, conhece muito mal as pessoas. Ninguém mais pode negar que no mundo do liberalismo econômico a miséria social se alastra como um incêndio de vastas proporções.
Não apenas no Brasil, mas também em todo o mundo a liberdade e tolerância ocidentais dão provas de um cinismo próprio à "democracia do apartheid, como bem a denominou Jurandir Freire Costa. Ao mesmo tempo, não é apenas nas favelas que os vínculos sociais são rompidos, mas em todas as classes sociais. Tanto o efetivo processo econômico quanto a ideologia neoliberal tendem a dissolver as relações humanas na economia. O economista norte-americano Gary S. Becker foi laureado, em 1992, com o Prêmio Nobel por desenvolver a hipótese de que todo comportamento humano (até mesmo o amor) é orientado pela relação custo-benefício e pode ser representado matematicamente.
Os "realistas não têm resposta para a miséria social nem para a miséria das relações e sentimentos humanos num mundo inteiramente racionalizado pela economia; eles apenas encolhem os ombros e passam à ordem do dia imposta pelo mercado. Mas a miséria não pode permanecer calada, tem de encontrar sua própria linguagem. Como porém a linguagem racional do socialismo está morta, o irracionalismo da linguagem religiosa faz seu retorno a uma sociedade confusa _só que agora com uma gramática muito mais selvagem e funesta.
Agora se tornou evidente que o socialismo não era apenas uma ideologia, mas também uma espécie de filtro ético sem o qual a civilização moderna é totalmente incapaz de existir. Privada desse filtro, a economia de mercado sufoca em sua própria imundície, que deixou de ser assimilada institucionalmente.
Ao longo de quase 150 anos, até a década de 70 desse século, todo surto de modernização econômica desencadeava simultaneamente uma reação revolucionária da juventude intelectual. A solidariedade aos "fracos e oprimidos foi sempre um forte impulso à oposição e à crítica radical, inclusive sob o império da "juventude dourada das classes mais altas.
Após a vitória global do mercado, esse impulso extinguiu-se. Os "golden boys e as "golden girls da era neoliberal querem apenas jogar na Bolsa. A juventude da classe média, numa atitude narcisista, abandonou os preceitos morais e deixou de lado o trabalho intelectual. Seu espírito capitulou diante do mercado globalizado. Seja no Egito ou na Argélia, no Brasil ou na Índia, jovens ocidentalizados sonham em ganhar dinheiro como engenheiros ou médicos, jogadores de futebol ou corredores de atletismo; com o tempo, não se sentem mais responsáveis pela miséria social.
Os intelectuais estetizam a miséria e a exploram comercialmente; os sofrimentos daqueles que passam fome são transformados em publicidade.
O temperamento ditado pela lógica do mercado chegou mesmo a criar um "culto à maldade. Em seu livro sobre o "Renascimento do Mal, o sociólogo alemão Alexander Schuller afirma: "Não é mais o progresso e a razão que povoam nosso cotidiano e nossa fantasia, mas sim o mal. Desde a queda do socialismo, é possível verificar um aumento empírico da crueldade, e por toda parte impera uma maldade incompreensível.
Mas, se a própria juventude da classe média está moralmente perdida, a base moral para que os filhos dos pobres compreendam sua miséria é ainda mais problemática. Numa pesquisa realizada em Moscou com menores de 14 anos, a maioria dos meninos respondeu que sua "profissão dos sonhos é ser "mafioso, e as meninas, "prostituta.
O fundamentalismo não supera essa ausência de moralidade, mas apenas lhe dá uma expressão irracional. Quando essa regressão pseudo-religiosa se apodera do último resíduo de uma esperança perdida, arquivada ainda pendente pela história, a vontade de mudança torna-se o pálido desejo de ser deixado em paz pela economia de mercado.
O fundamentalismo não possui um programa de emancipação social, mas apenas um projeto ideológico de pura agressão, resultado aliás do próprio fracasso em concretizar a liberdade. Todo o seu programa esgota-se num ímpeto agressivo com roupagem religiosa, como na expressão dos jovens favelados de Paris: "J'ai la haine _tenho ódio.
As novas religiões do ódio, sejam elas de origem islâmica ou cristã, são todas de natureza sintética, arbitrária e eclética. Todas têm apenas o nome em comum com as autênticas tradições religiosas a que se remetem. São um subproduto da modernidade decadente das sociedades de mercado ocidentais ou ocidentalizadas. Pelo próprio fato de não oferecerem uma perspectiva histórica, tornam-se uma atraente alternativa de carreira para pequenos e grandes "líderes que se valem do ressentimento generalizado.
Os representantes da sociedade oficial e os ideólogos do neoliberalismo reagem a essa evolução ao tentarem aliar a lógica de mercado às "virtudes conservadoras. Os homens devem ser ao mesmo tempo egoístas e altruístas, implacáveis na concorrência e humildes perante Deus, minuciosos no cálculo abstrato de custos e benefícios e ao mesmo tempo moralmente imaculados.
Com essa esquizofrenia ética e pedagógica, o pensamento dos próprios "realistas econômicos transforma-se na mentira dos fundamentalistas: não há como diferenciar uma ideologia da outra. E isso não admira, pois o pano de fundo do fundamentalismo é constituído não apenas pela pobreza, mas também pelo medo da classe média com relação aos pobres. A ilusão pseudo-religiosa constrói seu ninho tanto nas cabeças dos pobres quanto na dos ricos.
A militância social da classe média, sob o disfarce de religião, não é menos poderosa do que a loucura dos pobres. Em seu ensaio "Visões da Guerra Civil, o escritor alemão Hans Magnus Enzensberger caracteriza essa tendência das "sociedades respeitáveis: "Cidadãos discretos transformam-se da noite para o dia em 'hooligans', incendiários, fanáticos raivosos, 'serial killers' e franco-atiradores.
O fundamentalismo é "realista e o "realismo é fundamentalista. Ambos possuem a mesma estrutura ideológica. Ambos falam, como se sabe, do "final da história, só que a escatologia do mercado acredita que esse final já foi alcançado. E ambos transitam pelos mesmos meios: os empresários, assim como os pregadores supostamente iluminados, são ávidos por dinheiro. Os pregadores, assim como os políticos, são ávidos por aparecer na televisão.
Por outro lado, não se pode negar o caráter quase religioso do "realismo econômico. Pois não vimos o presidente George Bush, a exemplo de seu adversário islâmico Saddam Hussein, enviar à frente de batalha o Deus de uma religião militante? E isso não é apenas um simples detalhe. A racionalidade do mercado tem origem religiosa; ela só é racional na medida em que um sistema irracional fechado sobre si mesmo cria sua racionalidade interna.
O resultado da história moderna _o mercado total_ é o resultado de uma religião secularizada que ganhou forma no protestantismo. Os Estados Unidos, a última força mundial do mercado, estão impregnados do fundamentalismo calvinista que considera o sucesso financeiro um fim em si mesmo. A tolerância ocidental é somente uma forma particularmente pérfida de intolerância, pois o deus do mercado não admite nenhum outro deus além de si mesmo e tolera apenas aquilo que se submete incondicionalmente a seus métodos.
O fim da história é o retorno da história. O início da modernização econômica foi marcado pelas guerras religiosas do século 17. Essa época foi substituída pelo absolutismo, com sua estrutura estatal e mercantilista. Somente no século 19 nasceu o liberalismo do livre mercado. Mas como definir o século 20?
Sob o aspecto formal, ele transformou o mercado numa totalidade perfeita, mas não sem provocar crises avassaladoras. Este é o século em que a história começou a voltar-se para o passado. As economias estatais das duas guerras mundiais, o socialismo estatal tanto do Oriente quanto do hemisfério sul e também o keynesianismo do Ocidente (com seus rudimentos de economia estatal) podem ser compreendidos de certa maneira como um regresso à era mercantilista.
Hoje, após o colapso de todas as variantes da economia de Estado moderna, o neoliberalismo promete uma nova Era de Ouro para o livre mercado. Mas, se é verdade que a história voltou-se realmente para o passado, uma era totalmente diferente nos acena do futuro. O cientista político norte-americano Samuel P. Huntington diz mais do que imagina ao propor a hipótese de que a época dos conflitos entre ideologia e Estados nacionais será substituída por um "conflito de civilizações. Qual o significado disso, senão que o processo de modernização econômica _antes de ser definitivamente sugado pelo buraco negro da história_ retornará à era da militância religiosa e à Guerra dos 30 Anos?
O neoliberalismo será irremediavelmente arrastado por essa tendência porque sua própria "utopia negra do mercado total possui um germe de religião totalitária. O socialismo, ao contrário, não se baseava apenas na economia estatal, mas também na idéia de uma sociedade solidária, que sanciona suas próprias leis em vez de seguir princípios irracionais. Se não quisermos que o século 21 se torne uma nova época de guerras religiosas, devemos reformular o socialismo num registro não mais dominado pela economia de Estado. Somente desse modo será possível dar uma nova abertura à história.

1996


autor e tradutor:
ROBERT KURZ é sociólogo e ensaísta alemão, co-editor da revista ''Krisis''; publicou no Brasil, entre outros, ''O Colapso da Modernização'' e ''A Volta do Potenkim'' (Paz e Terra). Tradução de JOSÉ MARCOS MACEDO

fonte:
http://obeco.planetaclix.pt/rkurz56.htm

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

textos sobre racismo

João Bernardo em MAR, nº3, Fevereiro de 1992, pag.3]



1

Uma sociedade de classes não duraria sequer mais um minuto sem instituições e ideologias que reunam exploradores e explorados em mitos comuns. Em Portugal, por ordem de importân­cia, o futebol e o patriotismo. Como ninguém se parece sentir com vocação ou força para atacar o primeiro, pelo menos é bem vindo tudo o que ponha o nacionalismo em causa.
Para repor as coisas no devido lugar seria bom mostrar que, primeiro, os Descobrimentos não o foram. A expansão marítima fez os Portugueses entrar em relação com povos detentores de culturas próprias e, em tantos casos, com circuitos comerciais transconti­nentais já existentes. Segundo, desde início que muitos portugueses, dos que partiram e dos que ficaram, teceram sérias críticas à expansão colonial, que por isso não foi obra de todo um povo, mas de uma parte, contra a opinião de outra. Terceiro, a aristocracia mercantil e os missionários não implantaram a sua cultura num vazio, mas tiveram de destruir ou adulterar as civilizações já existentes. O que recorda, em quarto lugar, que essa expansão de novos ideais assentou em formas destrutivas e no morticínio.
Mas que a crítica ao patriotismo lusíada não sirva para dar brilho aos nacionalismos terceiro-mundistas. Foram os antagonis­mos de classe dessas outras sociedades, ou as habituais chacinas entre os vários povos, que permitiram ao colonialismo penetrar e firmar-se. Os horrores de um dado nacionalismo são o espelho em que todos os demais nacionalismos devem olhar-se.


2 & 3

Um "encontro de antigos opositores"? Para reunir actuais submissos? As celebrações do passado, mesmo daquele com que se esteja de acordo, adormecem as pessoas para as necessidades imediatas. A sociedade portuguesa depara-se hoje com formas de racismo que têm, pelo menos para os que as sofrem, consequências bem mais funestas do que as comemorações dos "descobrimentos". Penso que o encontro mais importante é o dos portugueses que vêem na Comissão o nacionalismo que não querem, com emigrantes africanos - ou os eternos ciganos - vítimas de discriminações de que por vezes só vagamente nos apercebemos.
E, se neste sentido vier a desenvolver-se uma corrente de opinião com efectiva audiência, "um encontro de pessoas de diversas sensibili­dades" não será apenas possível, mas forçoso. Um movimento dotado de verdadeiras bases sociais caracteriza-se precisamente por aglutinar posições tantas vezes distintas. Pode- -se seleccionar o inimigo, nunca se consegue escolher os aliados. E ainda bem.

[em MAR, nº 4, Maio de 1992, pag. 1]



LÁ E CÁ

Portugal inclui-se, nas últimas décadas, entre os países cuja emigração assume proporções económicas mais significativas. Apesar disso a cultura portuguesa oficial - tanto o romance e a poesia como a pesquisa científica - não tem concedido à emigração um lugar compatível com a sua importância. Os festejos em honra do "Sr. Emigrante" servem para ocultar a falta de qualquer trabalho de fundo.
Mas não é por a cultura portuguesa desprezar o papel da emigração que a emigração deixou de ser fundamental nas transformações recentes da nossa sociedade:
Os emigrantes de regresso ou em férias, e sobretudo os seus filhos, com uma mentalidade nova e uma moral mais aberta, deram cabo de alguns hábitos tacanhos e submissões tradicionais nas aldeias e cidades de província.
Nos últimos anos do fascismo a emigração em massa foi responsável por uma elevadíssima percentagem de ausências nas incorporações militares, contribuindo para apressar o fim das guerras coloniais.

*

Sem gozarem do devido reconhecimento no país de origem, os emigrantes sofrem também a hostilidade ou mesmo os insultos raciais nos países para onde vão trabalhar. Mas será que isso lhes abre os olhos para o fenómeno do racismo?
Será que o emigrante português em França, vítima do racismo, se sente solidário com os Árabes ou os Negros, vítimas de um racismo ainda pior? Será que o racismo sofrido pelos Portugueses na Alemanha os aproxima dos Turcos?
Ou será que os Portugueses procuram beneficiar de uma cor de pele relativamente mais clara, de uma religião relativamente mais cristã e de um país que se tem vindo a integrar - relativamente - na CEE?

*

Desenvolveu-se entretanto em Portugal um fenómeno simétrico: o dos imigrantes africanos que para aqui vêm trabalhar.
Todos os emigrantes portugueses sabem - e dizem-no repetida­mente - que a sua presença nos outros países é importante para as economias estrangeiras. Têm por isso de reconhecer que a presença em Portugal dos imigrantes africanos é importante para a economia nacional.
Todos os emigrantes portugueses sofrem manifestações de racismo nos lugares onde trabalham - e relatam-nas em pormenor. Por que não lutam então contra a hostilidade e o racismo de que são vítimas os Africanos em Portugal?
Será que os emigrantes portugueses, tão hábeis em iludir no estrangeiro as barreiras legais - e que tanto gostam de se vangloriar desse seu engenho - irão ajudar agora os imigrantes africanos a fazer o mesmo em Portugal?
Uma sociedade como a portuguesa, onde é difícil encontrar alguém que não tenha pessoas de família na emigração, deveria ser a primeira a manifestar-se contra todas as formas de racismo e a não praticar nenhuma delas.
Enquanto aqueles que forem vítimas do racismo lá se revelarem racistas cá haverá quem se ria cá e lá - os patrões que nos exploram a todos.

L’ANARCHISME ET MOI

Stig Dagerman

Les détracteurs de l’anarchisme ne se font pas tous la même idée du danger idéologique que représente celui-ci et cette idée varie en fonction de leur degré d’armement et des possibilités légales qu’ils ont d’en faire usage. Tandis qu’en Espagne, entre 1936 et 1939, l’anarchiste était considéré comme si dangereux pour la société qu’il convenait de lui tirer dessus des deux côtés (en effet, il n’était pas seulement exposé, de face, aux fusils allemands et italiens mais aussi, dans le dos, aux balles russes de ses « allié » communistes), l’anarchiste suédois est considéré dans certains cercles radicaux, et en particulier marxistes, comme un romantique impénitent, une sorte d’idéaliste de la politique aux complexes libéraux profondément enracinés. De façon plus ou moins consciente, on ferme les yeux sur le fait, pourtant capital, que l’idéologie anarchiste, couplée à une théorie économique (le syndicalisme) a débouché en Catalogne, pendant la guerre civile, sur un système de production fonctionnant parfaitement, basé sur l’égalité économique et non pas sur le nivellement mental, sur la coopération pratique sans violence idéologique et sur la coordination rationnelle sans assassinat de la liberté individuelle, concepts contradictoires qui semblent malheureusement être de plus en plus répandus sous forme de synthèses. Afin, pour commencer, de réfuter une variété de critique anti-anarchiste qui est souvent le fait de gens qui confondent leur pauvre petit fauteuil de rédacteur avec un baril de poudre et qui, à la lumière, par exemple, de quelques reportages sur la Russie, pensent détenir le monopole de la vérité sur la classe ouvrière et sur ses conditions, j’ai l’intention, dans les lignes qui suivent, de m’attarder sur cette forme d’anarchisme qui est connue, en particulier dans les pays latins, sous le nom d’anarcho-syndicalisme et s’y est révélée d’une parfaite efficacité non seulement pour la conquête de libertés jadis étouffées, mais également pour la conquête du pain.

Dans le choix d’une idéologie politique, cette voie royale vers un état de la société qui représente au moins quelques centièmes de ressemblance avec les idéaux dont on rêvait avant de s’apercevoir que les boussoles terrestres sont désespérément faussées, intervient presque toujours la prise de conscience du fait que la faillite des autres possibilités, qu’elles soient nazies, fascistes, libérales ou de toute autre tendance bourgeoise, ou encore socialistes autoritaires de toutes nuances, ne se manifeste pas seulement par la quantité des ruines, des morts et des infirmes dans les pays directement atteints par la guerre, mais aussi par la quantité des névroses et des cas de folie et de manque d’équilibre dans les pays apparemment épargnés comme la Suède. Le critère de l’anomalie d’un système social, ce n’est pas seulement une injustice révoltante dans la répartition de la nourriture, des vêtements et des possibilités d’éducation, il faut aussi que soit bien établi le fait qu’une autorité temporelle qui inspire la peur à ses administrés doit être l’objet d’une méfiance salutaire. Les systèmes basés sur la terreur, comme le nazisme, révèlent certes instantanément leur nature par une brutalité physique qui ne connaît pas de bornes, mais une réflexion un peu plus approfondie amène vite à comprendre que les systèmes étatiques les plus démocratiques eux-mêmes font peser sur le commun des mortels une charge d’angoisse que ni les fantômes ni les romans policiers n’ont la moindre chance d’égaler. Nous nous souvenons tous de ces gros titres noirs et terrifiants dans les journaux, à l’époque de Munich – combien de névroses n’ont-ils pas sur la conscience ! –, mais la guerre des nerfs que les maîtres du monde sont en train de mener en ce moment même à Londres contre la population du globe, au moyen de l’assemblée générale de l’ONU, n’est pas moins raffinée. Laissons de côté ce qu’a d’inadmissible le fait qu’une poignée de délégués puisse jouer avec le sort d’un bon milliard d’êtres humains sans que personne trouve cela révoltant, mais qui dira à quel point est horrifiante et barbare, du point de vue psychologique, la méthode selon laquelle sont réglées les destinées du monde ? La violence psychique, qui semble être le dénominateur commun de la politique que mènent des pays par ailleurs aussi différents que l’Angleterre et l’URSS, est déjà suffisante pour justifier que l’on qualifie leurs régimes respectifs d’inhumain. Il semble que pour les régimes autoritaires, aussi bien démocratiques que dictatoriaux, les intérêts de l’État soient peu à peu devenus une fin en soi devant laquelle a dû s’effacer le but originel de la politique : favoriser les intérêts de certains groupes humains. Malheureusement, la défense de l’élément humain en politique a été transformée en slogan vide de sens par une propagande libérale qui a camouflé les intérêts égoïstes de certains monopoles sous le voile de dogmes humanitaires douceâtres et sans grand contenu idéaliste, mais ceci ne peut naturellement pas, à soi seul, mettre en péril la capacité humaine d’adaptation, comme les propagandistes de la doctrine étatique veulent nous le faire croire.

Le processus d’abstraction qu’a subi le concept d’État au cours des âges est, selon moi, l’une des conventions les plus dangereuses de tout le maquis de conventions que le poète doit traverser. L’adoration du concret dont Harry Martinson s’est aperçu, au cours de son voyage en URSS, qu’il était le cœur de la doctrine étatique (et qui se manifestait par des portraits de Staline de toutes tailles et de tous modèles) n’était naturellement qu’un raccourci sur le chemin menant à cette canonisation de l’Abstrait qui fait partie des caractéristiques les plus effrayantes du concept d’État. C’est précisément l’abstrait qui, par son intangibilité, par sa situation en dehors de la sphère des influences, peut dominer l’action, paralyser la volonté, entraver les initiatives et transformer l’énergie en une catastrophique névrose de l’enchaînement au moyen d’une brutalité psychique qui peut certes, pendant un certain temps, garantir aux dirigeants une certaine dose de paix, de confort et de souveraineté politique apparente, mais qui ne peut avoir, en fin de compte, que les effets d’un boomerang social. La compensation que, dans une société étatique, l’individu se voit offrir, lors de chaque élection, pour les possibilités d’action dont il est privé est insuffisante en soi et le sera naturellement de plus en plus au fur et à mesure que sa capacité intérieure d’initiative se verra comprimée. Les liens invisibles qui, par-dessus les nuages, unissent dans une communauté de destin complexe mais grandiose l’État et la haute finance, les dirigeants avec ceux qui les manipulent, et la politique avec l’argent, instillent à la partie non initiée de l’humanité un fatalisme que ni les sociétés d’État pour la construction de logements ni les romans-pavés d’Upton Sinclair n’ont réussi à entamer.

Il doit donc pouvoir être établi que l’État démocratique de l’époque contemporaine représente une variété tout à fait nouvelle d’inhumanité qui ne le cède en rien aux régimes autocratiques des époques précédentes. Le principe « diviser pour régner » n’a certes pas été abandonné mais l’angoisse résultant de la faim, l’angoisse résultant de la soif, l’angoisse résultant de l’inquisition sociale a, au moins en principe, dû céder la place, en tant que moyen de souveraineté dans le cadre de l’État-providence, à l’angoisse résultant de l’incertitude et à l’incapacité dans laquelle se trouve l’individu de disposer de l’essentiel de son destin. Enfoncé dans le bloc de l’État, l’individu est sans cesse en proie à un sentiment lancinant d’incertitude et d’impuissance qui doit rappeler la situation de la coque de noix dans le Maelström ou celle d’un wagon de chemin de fer, attaché à une locomotive en folie, qui serait doué de pensée mais n’aurait pas la possibilité de comprendre les signaux ni de s’y reconnaître dans les aiguillages.

D’aucuns ont tenté de définir l’analyse obsessionnelle de l’angoisse qui caractérise mon livre Le Serpent comme une sorte de « romantisme de l’angoisse », mais le romantisme implique une inconscience analytique, une façon délibérée d’ignorer tout fait qui risquerait de ne pas cadrer avec l’idée qu’il se fait des choses. Alors que le romantique de l’angoisse, pris d’une joie secrète de voir soudain tout concorder, désire incorporer l’ensemble dans son système d’angoisse, l’analyste de l’angoisse lutte contre cet ensemble, avec son analyse comme bastion avancé, en mettant à nu, au moyen de son stylet, toutes ses ramifications secrètes. Sur le plan politique, ceci doit impliquer que le romantique, qui accepte tout ce qui peut alimenter les brasiers de sa foi, ne peut rien avoir à reprocher à un système social basé sur l’angoisse et le fait même sien avec une joie fataliste. Pour moi, qui suis au contraire un analyste de l’angoisse, il a fallu, à l’aide d’une méthode analytique d’exclusions successives, trouver une solution au sein de laquelle toute la machine sociale puisse fonctionner sans avoir recours à l’angoisse ou à la peur comme source d’énergie. Il est bien sûr exact que ceci suppose une dimension politique tout à fait nouvelle qui doit être débarrassée des conventions que nous avons pris l’habitude de considérer comme indispensables. La psychologie sociologique doit se donner pour tâche de détruire le mythe de « l’efficacité » du centralisme : la névrose, causée par le manque de perspective et par l’impossibilité d’identifier sa situation dans la société, ne peut être contrebalancée par des avantages matériels purement apparents. L’éclatement de la macro-collectivité en de petites unités individualistes, coopérant entre elles mais par ailleurs autonomes, que préconise l’anarcho-syndicalisme, est la seule solution psychologique possible dans un monde névrosé où le poids de la superstructure politique fait chanceler l’individu. L’objection selon laquelle la coopération internationale serait entravée par la destruction des différents États ne résiste naturellement pas à l’analyse ; car personne ne pourrait oser soutenir que la politique étrangère menée, sur le plan mondial, par les différents États ait contribué à rapprocher les nations les unes des autres.

Plus sérieuse est l’objection selon laquelle l’humanité ne serait pas, qualitativement parlant, capable de faire fonctionner une société anarchiste. C’est peut-être exact jusqu’à un certain point : le réflexe du groupe, inculqué par l’éducation, ainsi que la paralysie de l’initiative ont eu des effets totalement néfastes à une pensée politique sortant des sentiers battus. (C’est bien pour cette raison que j’ai choisi d’exposer mes idées sur l’anarchisme principalement sous forme négative.) Mais je doute que l’autoritarisme et le centralisme soient innés en l’homme. Je croirais plutôt, au contraire, qu’une pensée nouvelle, à sa manière, que, faute de mieux, j’appellerai le primitivisme intellectuel et qui, au moyen d’une analyse très fine, procéderait à une radiographie des principales conventions laissées de côté par son ancêtre le primitivisme sexuel, pourrait finir par faire des prosélytes parmi tous ceux qui, au prix, entre autres choses, de névroses et de guerres mondiales, veulent faire coïncider leurs calculs avec ceux de Marx, d’Adam Smith ou du pape. Ceci suppose peut-être à son tour une nouvelle dimension littéraire dont il vaudrait sans doute la peine d’explorer les principes.

L’écrivain anarchiste (forcément pessimiste, puisqu’il est conscient du fait que sa contribution ne peut être que symbolique) peut pour l’instant s’attribuer en toute bonne conscience le rôle modeste du ver de terre dans l’humus culturel qui, sans lui, resterait stérile du fait de la sécheresse des conventions. Être le politicien de l’impossible, dans un monde où ceux du possible ne sont que trop nombreux, est malgré tout un rôle qui me satisfait à la fois comme être social, comme individu et comme auteur du Serpent.

Traduit du suédois par Philippe Bouquet

A culpa é da mulher!

« La femme blanche portugaise cherche instinctivement à éliminer sa rivale noire
anathématisant sa race […]. En effet, la nécessité de lutter avec sa soi-disant rivale
non seulement conduit la femme à propager le mythe de l’infériorité, comme ségrégue
de plus en plus l’homme blanc de la convivialité avec les hommes de couleur …
Dans les rapports interraciaux, la femme blanche n’est pas étrangère à la dévalorisa-
tion du métis. »


Frase de um tal Jorge Dias, etnólogo salazarento na época do luso-tropicalismo. Não deixa de ser curioso que certas mulheres da pátria dessa ideologia, dão a mesma justificação para a animosidade xenófoba contra as suas patrícias mercenárias no nosso jardim à beira mar plantado.

trecho retirado do artigo citado mais abaixo.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

estudos sobre racismo em portugal III

http://docserver.ingentaconnect.com/deliver/connect/brill/12570273/v14n1/s2.pdf?expires=1201115093&id=41885019&titleid=75000163&accname=Guest+User&checksum=77F57D489485D91914EF18BD4E773DFB

Racistas são os outros. As origens do mito do « não racismo » dos portugueses


Marques, João Filipe
Lusotopie, Volume 14, Number 1, 2007 , pp. 71-88(18)

estudos sobre racismo em portugal II

Estereótipos sociais e assimetria simbólica : três estudos com jovens angolanos e portugueses

Cabecinhas, Rosa
Amâncio, Lígia


Foram realizados três estudos tendo por objectivo analisar os estereótipos dos jovens portugueses e dos jovens angolanos residentes em Portugal, sobre o seu próprio grupo (auto-estereótipo) e sobre o grupo dos outros (hetero-estereótipo). No Estudo 1, recorrendo a uma técnica de associação livre de palavras, analisámos os estereótipos dos angolanos e dos portugueses, salientando quais as dimensões comuns e quais as dimensões diferenciadoras. No Estudo 2, recorrendo a uma lista de adjectivos elaborada com base nos resultados do estudo precedente, averiguámos a valência avaliativa dos conteúdos descritivos associados a cada grupo, a partir da simples opinião pessoal de cada participante. No Estudo 3, recorrendo à mesma lista de adjectivos, analisámos a distância destes conteúdos face ao referente ‘universal’ de pessoa adulta. Os resultados destes três estudos demonstram que a diferenciação entre os grupos se estabelece estruturalmente pela assimetria simbólica. O grupo dos ‘angolanos’ foi descrito de forma mais homogénea do que o grupo dos ‘portugueses’, tanto por participantes angolanos como portugueses, isto é, o estereótipo dos angolanos é mais marcado e mais consensual do que o estereótipo dos portugueses. De um modo geral, o estereótipo dos angolanos aproxima-se do modelo de pessoa ‘jovem’ enquanto que o estereótipo dos portugueses está mais próximo do modelo de pessoa ‘adulta’, isto é, pessoa autónoma, com capacidade de realização e de decisão
https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/1651/1/rcabecinhas_lamancio_LusoAfroBra_2004.pdf

estudos sobre racismo em portugal

Colonialismo, identidade nacional e representações do “negro”

Cabecinhas, Rosa
Cunha, Luís

"Estudos do século XX". ISSN 1645-3530. 3 (2003) 157-184.

Neste artigo traçamos um breve resumo da ‘ideologia racista’ que se desenvolveu em Portugal, sobretudo a partir do início do século XIX até ao 25 de Abril de 1974, com especial destaque ao período do Estado Novo por ser considerado por diversos autores o período mais marcante da ideologia racista em Portugal. Seguimos a evolução das concepções em torno deste tema no meio político e científico portugueses, socorrendo-nos neste percurso de trabalhos efectuados por historiadores, sociólogos e antropólogos. Pontualmente, fazemos referência a outras fontes, nomeadamente a literatura africana de língua portuguesa.

https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/1791/1/rcabecinhas_lcunha_ArtCol_2003.pdf

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

A Legitimidade Democrática do Fascismo


por João Bernardo


Nunca uma ideologia se limita a afirmar-se no presente. Com igual empenho reconstrói o passado; e os mitos assim criados servem para legitimar outro quadro, não menos fantasista, em que a realidade de todos os dias é apresentada como o seu exacto oposto. Nestas circunstâncias não resta outro recurso, a quem pretenda participar na crítica do presente, do que desvendar também a história.
Que história? A do que sucedeu? O passado está enterrado com os seus mortos e o que aconteceu ninguém sabe, nem eles, porque os vivos conhecem apenas o que julgam fazer. Para além disso, aquilo que exactamente fazemos só pode ser apercebido nas suas consequências -e sê-lo-á então por outros, pelos que vierem depois. Esses, porém, sentem o peso dos antepassados, não como uma realidade própria, mas como o terreno onde dão vida às novas acções. Por isso somos obrigados a avaliar a história, sem jamais podermos discorrer sobre o que sucedeu, à luz das imperiosas necessidades do presente.
Que presente? O daquilo que hoje sucede? A multiplicidade da prática em que participamos constitui para nós o real. Mas como a julgamos sem o saber exacto das suas consequências, que são as de um futuro que ainda está por vir, sempre a realidade nos escapa.
Ponto final nessa utopia de conhecer o real. Cada um sabe o que precisa de saber e tal como o precisa. Há por isso duas histórias, a apologética e a crítica, uma para os que dominam e os que aceitam a dominação, outra para os que põem as dominações em causa. Em todo o mundo o neoliberalismo é hoje a ideologia triunfante, proclamando uma economia de livre-concorrência e uma sociedade de opções livres. Sob estes mitos encobre-se um sistema oligopolístico, dotado de formas de planificação consideravelmente mais amplas e complexas do que os velhos planos centralizados que vigoraram nos regimes leninistas. Bom número de autores tem denunciado a forma como a actual sociedade democrática permite um grau superior de exploração da força de trabalho e é capaz de mecanismos de vigilância e de controle muitíssimo mais apurados e eu procurei abordar a questão em livros e artigos. Não é este o problema que me ocupa agora. Para caucionar a sua mistificação da sociedade actual os neoliberais pretendem que o capitalismo é um modo de produção essencialmente democrático e que, no passado, os regimes francamente totalitários, ou não seriam capitalistas, no caso soviético; ou, no caso dos fascismos, resultariam de impedimentos ao normal funcionamento dos mecanismos económicos, um efeito perverso da grande crise de entre as duas guerras mundiais, sem explicação nem raízes na sociedade democrática.
Quanto aos regimes de tipo soviético, mantiveram e reforçaram as relações de trabalho capitalistas e o sistema capitalista de organização das empresas, desenvolvendo por isso este modo de produção, sem jamais o porem em causa. A antiga União Soviética e os países da sua esfera de influência demonstraram na prática a possibilidade de conjugar diferentes sistemas de propriedade no interior do capitalismo, a tal ponto que não só a mesma classe social, mas em boa parte as mesmas pessoas, presidem às mudanças económicas hoje operadas. Mas não é esta também a questão que vou abordar. Decorria ainda a guerra civil e já no interior das fileiras do leninismo se erguiam vozes para denunciar o carácter capitalista da nova sociedade que se estava implantando. Desde então os críticos de esquerda do regime soviético foram perspicazes na análise das relações de exploração resultantes da degenerescência da revolução russa. A bibliografia sobre o assunto é abundante e as transformações dos últimos anos retiraram urgência à questão. É outro o problema que agora me interessa, o da completa legitimidade democrática dos fascismos.
Apaga o criminoso os traços e assim fizeram as democracias logo a seguir à vitória na segunda guerra mundial. Os mecanismos de censura, tanto os oficiais como os ocultos, impediram ou dificultaram nos últimos quarenta e cinco anos a difusão da literatura política e económica fascista, apresentando-se esta vigilância como uma medida progressista e, portanto, com a suplementar vantagem de caucionar a actividade censória. Fundadas numa operação de esquecimento colectivo, as actuais democracias puderam reconstruir a seu gosto a história, deformando inteiramente o que fora o fascismo e, ao mesmo tempo, desnaturando o passado democrático.
A organização corporativa dos sectores de actividade económica, característica do fascismo, não era fundamentalmente contraditória do velho liberalismo. Durante a Revolução Francesa, em Junho do 1791 foi promulgada a lei Le Chapelier, que proibiu a associação dos trabalhadores para a defesa dos seus interesses, tanto sob a forma de simples reuniões, como a constituição de sociedades de auxilio mútuo e a organização de greves, alargando-se no mês seguinte estas disposições ao mundo rural. Como a lei d'Allarde, votada em Março desse ano, dissolvera o sistema tradicional das corporações de ofício e suprimira as manufacturas privilegiadas, poderia parecer que se procurava uma completa atomização da sociedade, correspondente aos mitos da livre-concorrência. Porém, a legislação que tão estritamente coarctava os trabalhadores dava ao patronato toda a latitude para organizar discricionariamente as empresas. E, ao mesmo tempo, criaram-se e reconheceram-se legalmente múltiplas instituições financeiras e económicas destinadas a permitir a harmonização das estratégias dos capitalistas e a conjugação das suas actividades. A burguesia não operou nunca fragmentada em unidades individuais, mas sempre inserida em teias de interesses e em corpos sociais mais amplos.
Por outro lado. enquanto a lei proibia severamente todos os tipos de associação que se devessem à iniciativa dos trabalhadores, difundiam-se entre o patronato mais esclarecido práticas paternalistas, mediante as quais eram postas à disposição dos assalariados habitação e formas de assistência. Os proprietários das empresas não se limitavam, nesse caso, a controlar indirectamente os operários, mediante o controle que exerciam sobre o processo de trabalho. Controlavam-nos directamente, fazendo-os viver no bairro da empresa, dando aos seus filhos instrução na escola da empresa, vigiando-lhes os hábitos, refreando-lhes os vícios, em resumo, mantendo-os arrebanhados e disciplinados durante as vinte e quatro horas do dia. Deste modo a classe operária, em vez de pulverizada numa multidão de átomos isolados, como se poderia deduzir pelo texto da lei, aparecia frequentemente dividida em corpos sociais relativamente vastos, sob o comando de chefes de empresa.
Foi a estes tipos de organização social, puro fruto do capitalismo democrático, que o fascismo veio dar uma forma mais sistemática. E como o fez numa época em que a classe dos gestores disputava já a iniciativa política e, portanto, quando os gestores da força de trabalho eram suficientemente fortes para terem inteiramente corrompido e burocratizado a organização sindical, o velho paternalismo de empresa pôde adquirir nova vitalidade apoiando-se no sindicalismo reformista ou, pelo menos, aceitando a sua colaboração.
Quanto ao enquadramento político e ideológico, e se deixar de lado o fascismo nipónico, que pelo seu carácter militarista decorre em grande parte de tradições anteriores à Restauração Meiji, posso talvez dividir os fascismos de origem europeia em três grandes categorias.
Regimes como, por exemplo, o salazarismo em Portugal, a regência de Horthy na Hungria, o reinado de Carol II na Roménia e também, durante a ocupação alemã da França, o governo de Vichy, reduziram a um mínimo a componente populista. Não assentaram os mecanismos do poder na excitação de enormes manifestações colectivas, nem a organização militarizada de grandes massas assumiu qualquer papel decisivo no funcionamento do aparelho de Estado. «A nossa Ditadura aproxima-se, evidentemente, da Ditadura fascista no reforço da autoridade, na guerra declarada a certos princípios da democracia, no seu carácter acentuadamente nacionalista, nas suas preocupações de ordem social», declarava Oliveira Salazar numa das conhecidas entrevistas com aquele que viria a ser o seu secretário da Propaganda Nacional. «Afasta-se, porém, nos seus processos de renovação. [...] Mussolini, como sabe, é um admirável oportunista da acção [...] Sentimo-lo, constantemente, entre o escol que ele soube formar, que o serve com tanta inteligência, e a rua, a que é forçado a agradar, de quando em quando.»1 Fascismos desse tipo, a que poderia chamar conservador, preferiam manter a população na indiferença política e eram por isso os herdeiros das correntes moderadas nas duas grandes revoluções burguesas, a de Cromwell e, século e meio mais tarde, a Revolução Francesa.
A revolução inglesa triunfante, tal como, em França, a lei eleitoral de 22 de Dezembro de 1789, a Constituição de 1791 e, depois, os regimes que se sucederam ao 9 Thermidor, estabeleceram sistemas em que eram os meios de fortuna a decidir da participação política e a hierarquia de rendimentos a condicionar o grau desta intervenção. Só a disposição de terras ou outros rendimentos, avaliados acima de dado montante, ou o pagamento de impostos superiores a um certo limiar conferiam a capacidade de votar; e podiam apenas ser eleitos aqueles que tivessem fortunas mais importantes ainda. A esmagadora maioria da população masculina, além da totalidade das mulheres, ficava assim absolutamente afastada mesmo das formas mais passivas e simbólicas de participação política. Boissy d'Anglas expôs o problema com clareza ao apresentar o projecto do que haveria de ser a Constituição do Ano III (1795): «Se derdes os direitos políticos sem reserva a homens desprovidos de propriedade e se eles vierem a tomar assento entre os legisladores, hão-de fomentar ou deixarão que se fomente a agitação sem lhe temerem os efeitos; estabelecerão ou deixarão que se estabeleçam impostos funestos para o comércio e a agricultura porque não terão sentido, nem receado, nem previsto as suas temíveis consequências, e por fim precipitar-nos-ão naquelas convulsões violentas de que mal acabamos de sair.»2. Perante uma audiência tão reduzida, a actividade governativa não assumia um carácter espectacular e processava-se exclusivamente na sombra, pela harmonização dos vários interesses regionais e das rivalidades entre os notáveis. Era este o sentido da democracia para todos os que consideravam o radicalismo dos Levellers ou o terror jacobino como uma ameaça à estabilidade da nova classe dominante.

Foi exactamente deste tipo de constitucionalismo moderado, aceite pelos neoliberais como um dos expoentes do capitalismo democrático, que os fascismos conservadores se constituíram herdeiros. Só que, numa época em que o declínio da burguesia começava a favorecer a ascensão da classe dos gestores, o critério das fortunas foi secundarizado perante o da competência técnica. E o exclusivo da iniciativa política reservou-se, não só aos grandes proprietários fundiários e aos grandes chefes de indústria, mas sobretudo aos principais gestores, quer participassem na propriedade privada do capital, quer o controlassem graças à detenção de postos decisivos nas administrações.
O fascismo conservador manteve-se também na tradição das grandes doutrinas racionalistas do século dezoito, tal como haviam sido revistas pelo positivismo na segunda metade do século dezanove. Charles Maurras, um dos fundadores e a principal figura da Action Française, não foi propriamente um fascista porque, embora defendesse uma concepção orgânica do Estado, preconizava igualmente a redução do seu âmbito de intervenção e a descentralização administrativa. Mas foi o mestre de toda uma geração de fascistas conservadores, que mobilizou contra as ideologias irracionalistas e intuicionistas, em nome de uma Razão e uma clareza formal quase voltaireanas. E, discípulo de Maurras, Salazar era também admirador de Auguste Comte. Este quadro ideológico racionalista e positivista, hegemónico em França na Terceira República, precisamente o expoente da democracia burguesa, não foi significativamente alterado pelos ideólogos do fascismo conservador, que se limitaram a temperá-lo com um catolicismo burocratizado, nos antípodas do misticismo.
O segundo tipo de fascismo encontrou o modelo no regime implantado por Mussolini em Itália. Aí, um dos mecanismos fundamentais do exercício do poder consistia no relacionamento directo do chefe com as massas e, em vez de ser estimulada a passividade política, como sucedia no fascismo conservador, a população era, pelo contrário, um figurante indispensável, vasto coro em cujas vozes ritmadas deviam ecoar as ordens e os apelos do supremo dirigente. Mas para que esta participação pudesse, sem riscos para a manutenção da ordem, ser elevada até à histeria colectiva, era necessário que as massas estivessem enquadradas militarmente em amplas organizações, que assumiam assim um papel importante no funcionamento do Estado. O fascismo italiano serviu de exemplo a muitos movimentos políticos e a outros regimes, nomeadamente ao Estado Novo de Getúlio Vargas, no Brasil e, na Argentina, ao regime de Perón, inspirando ainda, durante a segunda guerra mundial, os colaboracionistas franceses sediados em Paris. Quanto às forma de manipulação política o nazismo inseria-se no mesmo modelo e só o seu carácter mais especificamente racista me leva a referi-lo numa categoria à parte. Como neste tipo de regimes era indispensável a relação directa do chefe com a população, podemos denominá-los fascismo populista.
E não foi menos pura a sua legitimidade democrática. Se os fascismos de tipo conservador continuaram as formas de constitucionalismo moderado em que a participação política dependia do nível de fortunas, os de tipo fascista deram continuidade às formas burguesas radicais assentes no sufrágio universal, precisamente aquele que, de entre todos os sistemas, é comummente apresentado como o expoente máximo da democracia. Esta afirmação pode à primeira vista parecer completamente absurda, se não observarmos dois aspectos.
Em primeiro lugar, as noções de soberania popular e de representatividade dos eleitos, apresentadas como o fundamento de teorias políticas inteiramente positivas e prosaicas, aproximam-se pelo contrário das práticas mágicas. O poder, ou se tem, ou não se tem; e delegá-lo é perdê-lo, deixar de o ter. Nas democracias, como o capitalismo as conhece, o sufrágio mais não é do que um ritual em que a população, mal lhe afirmam que é depositária do poder soberano, vai publicamente renunciar a ele. E por qualquer magia de que só os constitucionalistas possuem o segredo esse poder, como um espírito desencarnado, voaria para os eleitos. Deste modo o poder que a camada dirigente já antes detinha é apresentado como se procedesse de uma população que jamais o deteve. A concepção fascista do chefe supremo como emanação da vontade colectiva das massas é exactamente do mesmo tipo da concepção burguesa democrática para a qual o poder dos eleitos resultaria de uma delegação popular mediante o sufrágio universal.
É que, em segundo lugar, é completamente assimétrica a relação entre o supremo dirigente e as massas e, para que possa residir num dos lados apenas a totalidade da iniciativa, torna-se necessário que no outro os indivíduos se mantenham reciprocamente isolados. Nada mais ambíguo aqui do que o termo massas, ele próprio decorrente do quadro ideológico em que estes sistemas políticos foram pensados e funcionaram. As massas não tinham qualquer razão própria de ser, nada unia directamente os indivíduos uns aos outros, pelo contrário, a sua presença em conjunto tinha como única justificação a relação de cada um com o chefe supremo. «No Estado fascista o indivíduo não é anulado, mas multiplicado, exactamente do mesmo modo que um soldado num regimento não é diminuído, mas ampliado, pelo número dos seus camaradas», escrevia Mussolini3. Ora, a universalidade do direito de voto é precisamente a forma que melhor consubstancia a atomização da população no isolamento individual. Para votar, as pessoas são retiradas das relações sociais em que correntemente se inserem, e o acto só será válido se reflectir a redução de cada um às fronteiras do seu próprio corpo. Contra o carácter de classe adquirido enquanto produtores, o sufrágio universal exprime o isolamento recíproco das pessoas enquanto consumidores, que corresponde ao mito livre-concorrencial,
Desde a sua origem, a generalização do voto e o culto do supremo dirigente foram aspectos indissociáveis de um mesmo processo. Na Revolução Francesa eram os moderados que pretendiam reservar a capacidade eleitoral aos cidadãos abastados e a Montanha, ao tornar-se a facção dominante, alargou esse direito a todos os adultos do sexo masculino. O sufrágio universal masculino foi praticado já nas assembleias eleitorais reunidas em Setembro de 1792 e igual sistema ficou previsto para a designação da Assembleia legislativa na nova Constituição, votada em Junho do ano seguinte, embora se tivesse logo em seguida decidido que não entraria em vigor enquanto a guerra durasse. Ao mesmo tempo os Jacobinos conseguiram passar sob o seu controle o movimento da Descristianização. Para compreendermos o significado desta campanha é necessário recordar que não se limitou a atacar os rituais da Igreja, mas substituiu-os por outros, e quanto às novas cerimónias e aos seus objectivos os Jacobinos entraram em franco antagonismo com as correntes populares. Quando a 20 Prairial do ano II (8 de Junho de 1794), mês e meio antes do golpe de Estado que levou à sua derrota e execução, Robespierre presidiu à Festa do Ser Supremo e da Natureza, foi ele sobretudo, o dirigente supremo, quem aí foi celebrado. Era uma nova religião e uma nova arte? David, o célebre pintor, organizara os cenários e fora o coreógrafo do cortejo, dois dos mais importantes compositores franceses da época, Méhul e Gossec, haviam escrito a música e Robespierre, elegantemente vestido e empoado, levando na mão as espigas e flores que simbolizavam a natureza, apresentou-se isolado ao povo de Paris, separado dos outros representantes à Convenção, afastado mesmo dos seus colegas do Comité de Salvação Pública. Arte e religião novas, sem dúvida, aquelas mesmas que mais tarde outros coreógrafos encenariam para Mussolini e Hitler. Robespierre foi o primeiro dos dirigentes políticos modernos a fundir num processo único o culto do chefe e a fragmentação popular subjacente ao sufrágio universal. Se o fascismo conservador encontrou a sua caução democrática na ala moderada da Revolução Francesa, a caução do fascismo populista deveu-se ao jacobinismo radical.

Ao longo do século dezanove alternaram na vida política capitalista duas grandes correntes. Uma, continuadora das tendências moderadas da revolução inglesa e da francesa, defendia um sistema conservador que tinha no parlamento a instituição principal, considerado como o lugar onde se resolviam discretamente as rivalidades na elite. A outra, herdeira das alas radicais de ambas as grandes revoluções burguesas, propunha um regime populista em que a generalização do direito de voto servia para sustentar um autoritarismo pessoalizado.
Contra o parlamentarismo, o carácter plebiscitário que os populistas desejavam imprimir à vida política atraiu elementos de extremos opostos da sociedade. O corpo de deputados representava o obstáculo de maior peso a qualquer relacionamento directo que o principal governante procurasse estabelecer com o eleitorado, por isso os populistas sempre atacaram as Assembleias, mostrando -o que não era difícil - que se limitavam a resolver mesquinhas querelas de família em detrimento do interesse geral. Esta crítica correspondia, por um lado, aos ódios daqueles aristocratas que não tinham conseguido operar uma reconversão económica e que o desenvolvimento do capitalismo arruinara; na extrema-direita do leque político, a sua hostilidade ao parlamento dos ricos vinha do facto, para eles indesculpável, de se tratar de novos-ricos. Mas o anti-parlamentarismo dos populistas seduzia também, na outra ponta do espectro, muitos activistas do movimento operário; transmutavam para o campo moral os temas da luta de classes e o combate à exploração económica apresentava-se então como uma mera denúncia da corrupção. E o tema anarquista da vontade individual livre e desregrada inspirou os candidatos a chefe supremo, que se pretendiam livres na sua autoridade e colocados, portanto, acima das normas. Contra o parlamentarismo conservador, a força política do populismo plebiscitário foi tanto maior quanto mais capaz se mostrou de articular ambos os extremos. Criaram-se nesta conjugação redes de relacionamento que permitiram, não só influências recíprocas, mas uma repetida oscilação de tantos políticos e tantas organizações entre a extrema-direita e a extrema-esquerda. Assim se gerou e desenvolveu o que viria a ser o fascismo, e as próprias vanguardas estéticas do século dezanove são em grande parte incompreensíveis fora deste contexto.
Por isso convergiram na ideologia do fascismo populista duas grandes correntes do pensamento burguês do século dezanove. O racionalismo positivista não foi posto em causa e era o sistema a que se recorria para conceber fenómenos restritos à esfera das pessoas comuns na vida corrente. Em tudo, porém, que dissesse respeito à acção do chefe supremo e à sua relação com os elementos das massas, era apenas o irracionalismo que se invocava. Certas escolas de pensamento jurídico conjugaram as duas correntes, definindo como loucos tanto o grande criminoso, como o grande génio. À generalidade das pessoas, aos cidadãos respeitadores, que são os pequenos infractores, aplicava-se a bitola do comportamento normal, compreensível no quadro do racionalismo positivista. Os grandes violadores, porém, tidos como exteriores à normalidade, só em termos de irracionalismo deveriam ser entendidos. Da anormalidade negativa, a do crime, a sociedade defendia-se pela execução capital ou pelo isolamento carcerário. Mas a anormalidade do génio era criativa e precisamente por isso poderia revitalizar o mundo da normalidade. Até aqui, nada havia que saísse do banal tema romântico do artista acima da sociedade. Mas o populismo fascista foi mais longe e apresentou o chefe político como um artista da política. Hitler «acabou praticamente por identificar arte e política. E isto, como explicava ao Congresso do partido em 1936, porque tanto a arte como o Estado são produto de uma força criativa, a que dava designações variadas: «vontade autoritária» ou ainda a «capacidade política de criar formas». Derivam da vontade política, tanto a forma do Estado, como as formas das artes [...]. Os intérpretes da força criativa são, segundo Hitler, o artista por um lado e, por outro, o político. É típico que fale de um e outro em termos praticamente permutáveis.»4. Para os indivíduos da massa a razão e o racional; para o dirigente, enquanto artista, a intuição no irracional. Nas vésperas da Marcha sobre Roma, que lhe daria o poder, bradava Mussolini: «Criamos o nosso próprio mito. Esse mito é uma fé, é uma paixão. Não é necessário que seja uma realidade. É uma realidade pelo facto de ser um punho, de ser uma esperança, de ser uma fé, de ser coragem.»5. Passados bastantes anos, numa linguagem mais sóbria, esta concepção mantinha-se inalterada: «Uma doutrina não deve ser um mero exercício verbal, mas um acto de vida; e assim o valor do Fascismo reside no facto de estar raiado de pragmatismo, mas ter ao mesmo tempo uma vontade de existir e uma vontade de poder [...].»6. E ao justificar assim a sua acção o chefe fascista podia invocar a dupla caução das grandes tradições filosóficas do século dezanove.

Deve distinguir-se ainda um terceiro tipo de fascismo, o hitleriano. Tendo conseguido escapar à chacina que Hitler desencadeou na célebre noite de Junho de 1934 contra a ala radical do partido, Otto Strasser encontrou um temporário asilo em Itália, onde se queixou a Mussolini da falta de interesse do Führer pelas questões sociais. Mussolini teria comentado que Hitler, por nunca ter sido um revolucionário, não poderia agora ser um verdadeiro fascista. O antigo sindicalista e chefe de redacção do órgão oficial do Partido Socialista italiano queria dizer que só quem tivesse directamente participado na burocratização do movimento operário podia obter a experiência necessária para manipular as massas. Enganava-se. Hitler foi um revolucionário, talvez o mais revolucionário dos políticos capitalistas, porque as transformações que imaginava realizar seriam tão profundas que, para ele, deixariam sem sentido a questão social. Já em 1930, numa acesa discussão com Otto Strasser, declarara que «as únicas revoluções são as revoluções raciais; não pode ocorrer uma revolução política, ou económica, ou social -o que há sempre e apenas é a luta da camada mais baixa de raça inferior contra a raça superior dominante e esta perde a partida se esquecer as leis da sua existência.»7. E, após ter tomado o poder, repetia a um dignitário nazi que «qualquer política que não tenha uma base biológica ou objectivos biológicos é uma política cega.»8.
É tão grande a camada de esquecimento e as posteriores adulterações a que a máquina de propaganda das democracias se tem dedicado, que se torna necessário expor, na sua abjecção e pavorosa demência, o programa racista dos hitlerianos. No quadro das minhas concepções, empregando exclusivamente categorias sociais, devo enunciar uma doutrina que foi proclamada mediante critérios fundamentalmente rácicos. Daí uma inevitável tensão nas formas de expressão, entre os termos usados e a referência aos alheios. Mas é isso mesmo a análise crítica.
Os nazis pretenderam levar a cabo uma colossal experiência biológica, de que resultaria a criação de uma «raça superior». Hitler nem era um nacionalista, nem afirmava que os Alemães constituíam já essa raça dominadora. Era num quadro europeu, e não estritamente alemão, que ele pensava a sua actuação política, e os povos germânicos ou, mais latamente, nórdicos, constituiriam a base apenas a partir da qual a «raça superior» haveria de ser criada. Para esse fim os SS revelaram-se a instituição adequada. Esperava-se que uma rigorosa selecção dos seus membros, tendo em conta características biológicas, e um sistema autoritário ordenando e condicionando os acasalamentos, permitissem num prazo relativamente curto a criação extensiva de uma raça de chefes. A oeste a «raça superior» organizar-se-ia numa sociedade de tipo capitalista. A leste ficam os países dos Eslavos, considerados pelos nazis como uma «raça inferior», os sub-homens. Instaurar-se-ia aí um regime de escravismo de Estado, de que o aparelho político-militar dos SS constituiria a ossatura repressiva e económica e que conheceu um princípio de aplicação com a ocupação alemã durante a segunda guerra mundial.
Este programa tinha por objectivo que, na sociedade capitalista estabelecida no Ocidente, os patrões e os trabalhadores sentissem a alegada irmandade rácica acima das clivagens sociais e, por conseguinte, os antagonismos de classe fossem resolvidos em termos biológicos. Além disso, a exploração maciça dos escravos de Leste, directamente submetidos ao aparelho de Estado, beneficiaria a globalidade da sociedade ocidental, contribuindo para aumentar aí o nível de vida dos trabalhadores e -esperava-se -atenuar mais ainda as suas reivindicações. Por outro lado, o carácter infra-humano atribuído aos Eslavos, defrontados com a supremacia exercida pela nova «raça», impediria qualquer revolta séria da força de trabalho escravizada e relegaria, aqui também, para um plano meramente acessório a questão social. E assim, com este programa de apartheid executado numa dimensão continental, os nazis contavam instaurar uma sociedade de exploração perfeitamente estável, o império da mais absoluta ordem. Hitler teria declarado em 1932 a um círculo restrito de dirigentes do seu partido, encarregados do programa rácico e de expansão territorial: «É necessário que, de uma vez para sempre, uma Europa germânica crie as bases políticas e biológicas que serão os factores perpétuos da sua existência. [...] Estamos hoje perante a implacável necessidade de criar uma nova ordem social. [...] A sociedade sem classes dos marxistas é uma loucura. A ordem implica sempre uma hierarquia. Mas a concepção democrática de uma hierarquia baseada no dinheiro não é uma loucura menor. Uma verdadeira dominação não pode nacer dos lucros arriscados resultantes das especulações dos homens de negócios. [...] A verdadeira dominação só pode nascer onde existir a verdadeira submissão. Não se trata de suprimir a desigualdade entre os homens mas, pelo contrário, de a amplificar e transformá-la numa lei protegida por barreiras intransponíveis, como nas grandes civilizações dos tempos antigos.»9. Deixemos os tempos antigos, era no imediato que os hitlerianos pretendiam alicerçar numa revolução biológica um indestrutível regime de exploração.

À «raça superior» atribuíam-se por isso as características intelectuais adequadas à criação e à manutenção de uma sociedade de exclusiva ordem: o espírito de síntese, a capacidade de fazer prevalecer a união sobre as cisões, as hierarquias sobre os conflitos, o todo sobre as partes. Mas, para que a «raça superior» fizesse triunfar essa ordem estável e inaugurasse o Reich dos mil anos, seria necessário aniquilar primeiro a «raça» privada de espírito de síntese, os críticos propensos a analisar o todo na contraditoriedade das suas partes, os subversores que sempre ameaçam as hierarquias com os conflitos. E quem melhor os podia representar, senão aquele povo que, há dois mil anos expulso da pátria de origem, se revelara incapaz, tanto de se deixar assimilar pelos Estados que o acolheram, como de fundar um Estado próprio? Para quem considerava o Estado como a suprema manifestação da ordem, o Judeu errante, condenado à eterna diáspora, simbolizava a vocação da desordem. O catálogo das peculiaridades intelectuais necessariamente atribuídas aos Judeus e à «raça superior» foi muito desenvolvido e detalhado pelos partidários da Física Ariana. Dois prémios Nobel, Philipp Lenard e Johannes Stark, animaram um movimento de universitários e invetigadores que pretendiam reconstruir a física sobre bases rácicas, considerando a teoria quântica e a relatividade como tipicamente judaicas em virtude do seu carácter dedutivo e pela prática sistemática da abstracção quantitativa. Enquanto a «raça superior» se distinguiria pelo raciocínio indutivo e pelo prevalecimento do concreto qualitativo e, por isso, seria capaz de conceber a natureza como um todo e de praticar a experimentação científica como uma fusão do experimentador nesse todo. «Era um axioma entre todos os nacionais-socialistas a rejeição de quaisquer formas de materialismo e a adopção da ideia de uma natureza animada por um espírito omnipresente. A comunhão com esse espírito permitia adivinhar a ordem hierárquica natural das coisas, incluindo a necessidade de que um Führer conduzisse um povo na luta pela existência.»10. Sem interesse actual para a ciência, as elucubrações da Física Ariana são importantes porém para definir a ordem como o supremo critério de distinção entre as «raças». E assim todos os judeus começaram a ser perseguidos, mais tarde exterminados, como subversores. E todos os críticos, comunistas e social-democratas, foram de imediato perseguidos e em grande parte exterminados enquanto Judeus. Socialistas e comunistas sem nenhum antepassado judaico eram condenados como Judeus, do mesmo modo que o eram judeus francamente reaccionários ou conservadores.

O programa de genocídio anti-semita, a que a generalidade da grande imprensa hoje resume o fascismo alemão, não foi uma mera continuação dos pogroms que começaram a difundir-se na Europa a partir da Primeira Cruzada. Estes deveram-se à diferença de religiões, mas a perseguição nazi teve implicações muito mais amplas. Num quadro ideológico estritamente racista não podia deixar
de se atribuir uma referência rácica ao inimigo, a qualquer inimigo. Pretendendo exterminar os Judeus estava sobretudo a perseguir-se os adversários da ordem capitalista, os críticos, os opositores. E é precisamente isto que os sustentáculos actuais do capitalismo querem fazer esquecer. A campanha anti-semita foi um corolário das medidas destinadas a criar uma raça alegadamente superior. São essas medidas a questão central, de que todas as outras decorrem. Reduzir o nazismo a um anti-semitismo vulgar corresponde a ocultar toda uma problemática de manutenção e reforço da ordem, deixando além disso sem explicação o sistema de escravismo de Estado a que estavam votados os Eslavos. Mas é indispensável às democracias actuais confundir o fascismo hitleriano com um tipo de perseguição aos Judeus anterior ao capitalismo, para ocultar que, quanto ao aspecto central e específico do seu racismo, os nazis encontraram nas democracias as mais legítimas credenciais.
A transição da primeira para a segunda metade do século dezanove marcou urna profunda viragem nas formas de racismo prevalecentes na Europa. Até então as culturas eram exclusivistas e cada uma sobrevivia pela negação das outras. Mas se povos com crenças, línguas e formas de organização diferentes podiam ser considerados inferiores, essa alegada inferioridade cultural e social não se projectava geralmente numa inferioridade biológica. É certo que se documentam exemplos de conversão do ostracismo civilizacional numa pretensa hierarquia de capacidades intelectuais, mas eram casos pouco frequentes, reduzidos a pessoas ou meios restritos. Se a generalidade de uma população desdenhava o falar das outras, os seus hábitos, até a cor, não desprezava por isso as aptidões de cada indivíduo. Todos os grandes impérios consideraram bárbaros os vizinhos, mas um bárbaro que se pusesse ao serviço da sociedade rival e demonstrasse talentos podia ascender aos mais altos postos, chegar até ao trono. Na segunda metade do século ezanove, porém, generalizou-se nos países europeus uma nova concepção e o racismo passou a ter implicações biológicas, supondo-se que a uma cultura alegadamente inferior corresponderia uma inferioridade nas capacidades cerebrais.
Esta transformação fica ilustrada com especial clareza se compararmos duas das obras de Darwin. A primeira, publicada em 1839 com o título Journal of Researches into the Geology and Natural History of the Various Countries Visited by H.M.S. Beagle, 1832-36, tornou-se correntemente conhecida como The Voyage of the Beagle. Darwin revela aí uma profunda compreensão das relações sociais e das culturas de povos que, ao mesmo tempo, desdenhava pelas suas limitações tecnológicas e pela ausência de Estado. Por exemplo, depois de descrever as atrocidades que na Argentina as tropas de Rosas estavam a cometer na guerra contra os índios, observa: «É triste descobrir como os índios cederam perante os invasores espanhóis. Schirdel diz que em 1535, quando foi fundada Buenos Aires, havia aldeias com dois e três mil habitantes. Mesmo no tempo de Falconer (1750) os índios organizavam expedições contra lugares tão distantes como Luxan, Areco e Arrecife, mas agora estão remetidos para além do Salado. Não só foram exterminadas tribos inteiras, mas os que restam tornaram-se mais selvagens; em vez de habitarem grandes aldeias e se dedicarem aos ofícios da pesca e da caça, vagueiam agora pelas planícies, sem casa ou ocupação fixa.»11. É uma análise especialmente interessante por mostrar que a situação das populações indígenas na época não correspondia a quaisquer características próprias, resultando de uma degradação exclusivamente provocada pelos invasores. E tendo dedicado páginas a observar, sempre com compreensão e frequentemente com grande argúcia, o tipo de vida dos nativos do extremo sul das Américas, afirma a relação entre as formas sociais e as condições económicas e políticas: «A perfeita igualdade existente entre os indivíduos que compõem as tribos da Terra do Fogo há-de atrasar por muito tempo a sua civilização. [...] Quer se considere como uma causa, ou como uma consequência, são sempre os mais civilizados que têm as formas de governo mais artificiais. [...] Na Terra do Fogo, até que surja algum chefe com poder suficiente para se apoderar de qualquer vantagem adquirida, por exemplo os animais domesticados, não se afigura possível melhorar o estado político da região. Mesmo uma peça de tecido dada a alguém é rasgada em pedaços e distribuída; e nenhum indivíduo se torna mais rico do que outro. Por outro lado, é difícil entender como possa vir a surgir um chefe sem que haja antes algum tipo de propriedade que lhe permita manifestar a sua superioridade e aumentar o seu poder.»12. Não importa que Darwin considere aqui uma sociedade tanto mais perfeita quanto mais desiguais forem as fortunas e opressivo o Estado. O fundamental é que explica a situação daquelas populações em termos estritamente sociais, não rácicos.
E no entanto, quando em 1874 Darwin publicou a segunda edição, ampliada, de The Descent of Man and Selection in Relation to Sex, a perspectiva mudara radicalmente. O pressuposto do livro é a inferioridade biológica dos povos que vivem em sistemas sem propriedade, ou com um grau reduzido de diferenciação das fortunas, e sem Estado, ou sob formas rudimentares de opressão. Sempre que refere diferenças de raça é explícito que se trata de uma hierarquia, sendo os Brancos considerados superiores e ficando os Anglo-Saxónicos acima dos demais. E esta tese, que serve de fio condutor a toda a obra, é por vezes enunciada com flagrante rudeza e concisão, por exemplo ao afirmar: «A convicção de que existe no homem uma estreita relação entre a dimensão do cérebro e o desenvolvimento das faculdades intelectuais apoia-se na comparação dos crânios das raças selvagens e civilizadas, dos povos antigos e modernos, e por analogia com toda a série dos vertebrados.»13. E «os poderes mentais dos animais superiores não diferem em género, ainda que o façam muito em grau, dos poderes correspondentes do homem, especialmente das raças inferiores e selvagens [...].»14. Esta distância menor que separaria as raças inferiores dos animais superiores explicaria, sem dúvida, «a forte tendência observada nos nossos aliados mais próximos, os macacos, nos idiotas microcéfalos e nas raças selvagens da humanidade para imitar tudo aquilo que ouçam e lhes desperte a atenção [...].»15. Ao mesmo tempo passou também a considerar as mulheres física e mentalmente inferiores aos homens; será bom nunca esquecer que a conversão do racismo numa gradação biológica se operou conjuntamente com idêntica transformação no sexismo. Porém Darwin, se se tornou um racista, não deixou por isso de ser um grande cientista e a argumentação que emprega ilustra involuntariamente este paradoxo. No primeiro terço do livro afirma a inferioridade biológica dos povos que julga selvagens e propõe-se em seguida explicá-la. Para isso introduz a noção de selecção sexual mas tudo o que consegue, nos restantes dois terços da obra, é tentar justificar as diferenças de cor e de fisionomia, sem que nunca, nem numa linha sequer, possa daí inferir qualquer hierarquização das capacidades mentais. E assim ficou por demonstrar aquela que, para ele, seria precisamente a questão. Os discípulos estiveram longe de ter a probidade do mestre. Que se passara entretanto, para provocar uma mutação tão cabal?
Até então a expansão dos Europeus em direcção à África e ao Oceano Pacífico tivera objectivos predominantemente comerciais e assentara na fundação de entrepostos, mantendo relações de tráfico com as sociedades autóctones. O desenvolvimento da indústria nas metrópoles obrigou a uma profunda remodelação da estratégia colonial, que passou a visar principalmente a obtenção de alguns tipos de alimentos e de matérias-primas, quer pela extracção, quer pelo estabelecimento de grandes plantações. Mas para isso seria necessário converter ao assalariamento povos que, enquanto parceiros comerciais, tinham conservado os seus sistemas económicos próprios, e uma destruição metódica dos modos de produção tradicionais não poderia ocorrer sem a ocupação dos territórios. As guerras de conquista que as democracias europeias desencadearam em África na segunda metade do século dezanove, e que levaram à reunião da Conferência de Berlim em 1884-1885, foram a condição prévia à assimilação de povos que haviam antes sido aliados. E a obtenção de trabalhadores para as minas e plantações conseguiu-se com um misto de pressões económicas e fiscais permanentes, de enquadramento administrativo e de violência pura, resultando numa peculiar conjugação de assalariamento e trabalho forçado. Este processo de anulação de soberanias e de implantação dos novos sistemas de trabalho fez-se acompanhar, na consciência democrática europeia, pela convicção da inferioridade biológica dos povos de pele escura. O que se passara já em vastas regiões das Américas confirma esta análise. Desde há séculos que aí se mobilizavam grandes equipas de escravos, especialmente Negros importados de África, empenhados numa produção directamente destinada ao mercado mundial. E de igual modo as vítimas do sistema foram consideradas biologicamente inferiores pelas classes dominantes locais. As novas concepções de racismo eram necessárias para justificar aos Europeus a destruição dos modos de produção pré-capitalistas, a completa desorganização social de vastas populações e a integração de muitos dos seus elementos, sob a imediata e rigorosa vigilância dos colonos, num sistema de trabalho cuja razão de ser lhes escapava inteiramente por estar em relação directa com os grandes circuitos do comércio mundial.
As Sociedades de Geografia, que proliferaram a partir da segunda metade do século dezanove, constituíram, a infra-estrutura do novo tipo de colonialismo. Graças às expedições e pesquisas que patrocinavam e àquelas cujos resultados difundiam, as campanhas militares podiam ser mais cuidadosamente preparadas e redobrava-se a eficácia da ocupação territorial e do posterior enquadramento administrativo. Ao mesmo tempo a estratégia expansionista era justificada mediante o aprofundamento e a divulgação das novas formas de racismo. E em breve, graças sobretudo à acção das Sociedades de Geografia, este conjunto de orientações pôde ser integrado numa nova disciplina académica, a Geografia Política, depois denominada Geopolítica.
A Geopolítica pretendia explicar a necessidade sentida pelo capitalismo de afirmar o seu poder sobre novos e vastos territórios, atribuindo-a, não à dinâmica económica, mas a pretensos interesses históricos de povos entendidos não menos miticamente. E assim as aspirações imperiais das classes dominantes europeias e norte-americanas justificar-se-iam pelas cedências e a submissão que a alegada superioridade dos povos de pele clara necessariamente imporia aos povos, considerados inferiores, de pele mais escura, negra ou amarela. Nascida nas instituições universitárias e administrativas das democracias e aí desenvolvida, nomeadamente na Grã-Bretanha pela acção de Halford Mackinder, membro da ala mais imperialista do Partido Conservador e que, ao serviço do seu governo, desempenhou em 1919 um importante papel na guerra civil russa como conselheiro político das forças brancas, a geopolítica iria contribuir para a formação do pensamento de Hitler. O expoente desta disciplina na Alemanha de entre as duas grandes guerras, o general e geógrafo Karl Haushofer, foi, na Universidade de Munique, professor de Rudolf Hess, de quem se tornou amigo pessoal. E é bem conhecido que Hess, membro do partido nazi desde 1920, onde viria a ocupar o segundo lugar até à sua bizarra partida para a Grã-Bretanha durante a guerra, gozava então da inteira confiança de Hitler e ajudou -o quando ele, na cadeia, escrevia o Mein Kampf. Foi assim que Hitler teve oportunidade de aproveitar amplamente as doutrinas geográficas em voga. O cordão umbilical que unia o fascismo alemão às democracias ficou reforçado.
A Eugenia foi a outra das novas disciplinas académicas, desenvolvida nos regimes democráticos, que participou decisivamente na formação do quadro ideológico do nazismo. Directo continuador da obra de Darwin, o seu primo Francis Galton, fundador da Eugenia, desenvolveu o racismo em dois aspectos que se revelarão de grande importância. Por um lado, considerou em termos biológicos, não só as diferenças de situação entre os povos, mas também as diferenças sociais no interior de cada povo, de maneira que a elite da classe dominante seria superior, tanto sob o ponto de vista físico como mental, e os descendentes destas famílias herdariam as qualidades dos pais. Assim, Galton fundiu numa justificação única o domínio de uns povos sobre outros e, no interior de cada sociedade, de uma classe sobre a outra, explicando-os ambos pela superioridade biológica. Intimamente relacionada com esta concepção está a sua defesa de uma estratégia biológica, considerando necessária uma intervenção directa e sistemática na evolução humana, mediante o condicionamento dos acasalamentos, de maneira a aperfeiçoar a raça. A futura política hitleriana ficava assim já traçada nas suas linhas fundamentais. Aliás, a tese de Galton de que a genialidade era uma característica transmissível hereditariamente havia recebido a concordância de Darwin, que formulou ele próprio um verdadeiro programa de genocídio social e rácico.

Em primeiro lugar, Darwin abordou o problema de como assegurar, no interior de um mesmo povo ou sociedade, a supremacia dos que a si próprios se julgavam superiores relativamente aos considerados inferiores. «Entre os selvagens,» escreveu ele na sua grande obra sobre a evolução humana, «rapidamente são eliminados os indivíduos física ou mentalmente fracos; e os sobreviventes demonstram geralmente uma saúde vigorosa. Nós, os civilizados, pelo contrário, fazemos todo o possível por travar o processo de eliminação; construímos hospícios para os atrasados mentais, os aleijados e os doentes; promulgamos leis de auxílio aos pobres; e os nossos médicos empenham-se com toda a habilidade em salvar a vida de cada um até ao último momento. [...] Assim se propagam os membros fracos das sociedades civilizadas. Ninguém que tenha participado na criação de animais domésticos pode duvidar de que isto é forçosamente muito prejudicial à raça humana.» Mas ao chegar a este ponto Darwin intimidou-se nas conclusões, por considerar que a simpatia manifestada para com os fracos se integrava em formas de comportamento necessárias ao próprio tecido social. E consolou-se com a reflexão de que, pelo menos, «os membros inferiores e mais fracos da sociedade não se casam com tanta liberdade como os vigorosos », além da existência de factores institucionais que, mediante os mecanismos da selecção, beneficiariam os mais aptos física e mentalmente. Pôde assim concluir: «Embora a civilização trave de muitas formas a acção da selecção natural, parece favorecer um melhor desenvolvimento do corpo […]. Isto pode deduzir-se do facto de os homens civilizados, quando comparados com os selvagens, terem-se revelado mais fortes fisicamente.». Quanto às qualidades intelectuais, Darwin afirmou em seguida: «Se os membros de cada escalão da sociedade fossem divididos em dois corpos iguais, incluindo um os intelectualmente superiores e o outro os inferiores, não pode haver praticamente dúvidas que os primeiros teriam mais êxito em todas as profissões e criariam um maior número de filhos. […] Deve por isso haver nas nações civilizadas uma certa tendência para o aumento, tanto no número como no nível, dos intelectualmente aptos.» Apesar de tão agradável constatação, Darwin não era inteiramente optimista. « Nos países civilizados, um dos mais importantes obstáculos ao aumento numérico dos homens de uma categoria superior [...] [é] o facto de os mais pobres e imprevidentes, tantas vezes degradados pelo vício, [...] tenderem a multiplicar-se a uma taxa mais rápida do que a dos indivíduos previdentes e em geral virtuosos.»
Porém, actuariam igualmente em sentido contrário outros mecanismos da selecção natural, além de instituições sociais, levando os pobres, os imorais e os criminosos a sofrer uma maior taxa de mortalidade. Esta complexa articulação de forças opostas em caso nenhum levaria a resultados garantidos: «Se os vários obstáculos especificados [...], e, talvez outros ainda desconhecidos, não impedirem os imprevidentes, os depravados e os restantes membros inferiores da sociedade de aumentar a uma taxa mais rápida do que a dos homens de melhor categoria, a nação retrocederá, como sucedeu já tão frequentemente na história do mundo. Devemos lembrar-nos de que o progresso não é uma regra invariável.»16. Foi precisamente neste ponto que as teses de Galton continuaram as de Darwin, suprindo-se as incertezas da selecção natural com a intervenção segura «dos homens de melhor categoria». Aliás, já noutra passagem da mesma obra Darwin esteve à beira de conceber esse tipo de actuação, ao escrever que «o homem se distingue muito de qualquer animal estritamente domesticado, porque a sua criação nunca foi controlada durante muito tempo, quer por uma selecção sistemática, quer inconsciente. Nenhuma raça ou corpo de homens foi subjugada tão completamente por outros homens que alguns indivíduos fossem conservados, e assim seleccionados inconscientemente, por de algum modo serem da maior utilidade para os seus senhores.»17. Só pode chegar-se a um grau tão extremo de antecipação histórica quando o lugar das doutrinas e práticas futuras está já exactamente marcado.
Ainda que Darwin hesitasse quando analisava a questão rácica no interior de uma mesma sociedade, tudo parecia esclarecer-se ao passar para o confronto entre povos. A superioridade branca, nomeadamente anglo-saxónica, encontraria confirmação na própria expansão imperialista, que Darwin entendeu como uma verdadeira estratégia de genocídio. «A extinção resulta sobretudo da rivalidade entre tribos e entre raças. [...] Quando nações civilizadas entram em contacto com selvagens a luta é breve [...] o cultivo da terra será, de maneiras diversas, fatal para os selvagens, que não podem, ou não querem, mudar de hábitos. Nalguns casos novas doenças e vícios revelaram-se muitíssimo destrutivos» e Darwin continua a enunciar um catálogo de formas de extinção das populações autóctones resultantes da introdução de novas instituições económicas e administrativas e de novos tipos de vida, sem esquecer o extermínio provocado mais directamente pelas campanhas militares18. A este respeito já não tinha dúvidas quanto ao sentido prevalecente nos mecanismos de selecção. «O nível de civilização parece ser um elemento da maior importância no êxito de nações rivais.» E poucas linhas depois, com igual convicção, escrevia, a propósito de um dado caso, que «a morte seguiu-se às tentativas de civilizar os nativos.»19. Se aquela mesma «civilização» que assegurava o triunfo de uns garantia a liquidação dos outros, então tudo corria bem no melhor dos mundos. «Numa época futura que não há-de distar muitos séculos, as raças civilizadas do homem decerto exterminarão em todo o mundo, e substituirão, as raças selvagens .»20.
Na sequência da acção de Galton, as Sociedades de Eugenia proliferaram nos meios universitários das democracias europeias e norte-americana, empenhando-se mais profundamente ainda do que o fundador no programa racista. E o racismo recebeu a consagração oficial no direito internacional das democracias quando a Sociedade das Nações, fundada em 1919 por iniciativa das potências vencedoras na primeira grande guerra, se recusou a introduzir nos seus estatutos uma cláusula de igualdade racial, proposta pelo Japão e pela China. Embora o presidente Woodrow Wilson tivesse sido um dos mais activos promotores da Sociedade das Nações, os Estados Unidos acabaram por se auto-excluir, em virtude da posição isolacionista tomada por grande parte do Senado; o que não impediu os dirigentes do país de agravarem eles próprios as medidas racistas. Os eugenistas, cujas campanhas contra a imigração se haviam iniciado nos Estados Unidos antes ainda do começo deste século, beneficiaram de um crescente apoio dos meios políticos e o Congresso aprovou em 1924 a National Origins Quota Law que, além de estabelecer um limite máximo ao número de imigrantes aceite anualmente, fixava as suas origens nacionais consoante critérios destinados a orientar a composição étnica da população norte-americana. Ao mesmo tempo, e por influência também das Sociedades de Eugenia, começava a difundir-se a esterilização de várias categorias de doentes mentais e de pessoas consideradas criminosas ou moralmente pervertidas. Na década de 1930 numerosos estados dos Estados Unidos e algumas das mais modelares democracias europeias haviam promulgado legislação neste sentido.

Bastante antes de os nazis conquistarem o poder já as democracias tinham criado, desenvolvido e aplicado um programa racista que não só afirmava a existência de uma hierarquia de capacidades mentais e físicas consoante as cores de pele e os estratos sociais, mas propunha-se igualmente, mediante normas legais, conduzir uma actividade selectiva de modo a orientar a evolução biológica. O racismo hitleriano distinguiu-se do racismo democrático apenas sob o ponto de vista administrativo, pois era num quadro altamente centralizado que pretendia produzir a «raça superior», enquanto as democracias, articulando vários centros de poder, propunham-se chegar de outra maneira ao mesmo objectivo. Mas esta diferença de actuações não se restringia ao racismo, decorrendo das formas de organização a que, neste campo como em todos os outros, obedeciam os aparelhos de Estado. Quanto à ideologia e aos seus objectivos, os projectos de Hitler inseriram-se legitimamente no quadro da geopolítica e da eugenia, dispondo portanto das mais puras credenciais democráticas.
Nem era menor a sua legitimidade democrática quando recorriam às formas mais delirantes da atrocidade para aplicar o programa rácico. É bem conhecido o horror dos campos de concentração nazis, mas os democratas cobrem com um espesso silêncio a transformação de vastíssimos territórios colonizados em puros campos de concentração. Os regimes parlamentares eram uma forma política adequada ao tipo de economia prevalecente nas metrópoles; e este aspecto do sistema capitalista não podia existir sem o seu complemento, a exploração colonial, com as atrocidades sistemáticas e o terrorismo de Estado necessários para introduzir o trabalho assalariado entre populações que toda uma cultura prendia a outros modos de produção. Democracia e terror colonial foram duas faces da mesma realidade. Só o emprego extensivo de variadas formas de crueldade, não só as punições físicas, mas a permanente humilhação social e psicológica, pôde converter, no espaço de uma geração, populações seguras de si, ou tantas vezes arrogantes, numa mssa submissa. Para que a vida se processasse nos termos requeridos pelo colonialismo era indispensável desagregar os sistemas sociais existentes e a tarefa não foi entregue à livre iniciativa dos colonos. Foi planeada e superiormente dirigida pelas classes dominantes nas metrópoles democráticas. Tratava-se de deixar esses povos sem qualquer compreensão do presente, de modo a serem roubados do futuro. Deixá-los desprovidos de passado foi o verniz ideológico deste programa e para isso os universitários recusaram a dignidade da História a todas as histórias que não tivessem conduzido à civilização europeia e negaram a igualdade biológica dos povos que sustentavam culturas diferentes. Seria impossível fazer aqui o catálogo das crueldades praticadas nas colónias pelas democracias. Seria inútil também, porque o principal horror reside na possibilidade de empregar sistematicamente tais métodos, e não no facto de mais um, ou dez, ou mil mutilados se juntarem à soma.










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O neoliberalismo precisa de reconstruir a história e a ilusória pureza de que reveste os seus antecedentes é o espelho da falsidade com que opera no presente. O mundo mudou. Enquanto territorialização do expansionismo e reforço do aparelho clássico de Estado num único pólo centralizador, o fascismo, tal como existiu entre as duas guerras mundiais, está encerrado. A dinâmica capitalista deve-se agora às grandes empresas multinacionais que, deixando as fronteiras sem significado, estabelecem uma rede económica e política que não sustenta já territórios contínuos e homogéneos. E, inter-relacionando-se numa multiplicidade de pólos principais, as grandes sociedades multinacionais e as principais administrações alicerçaram um novo sistema de poder, que exercem de forma pluricentrada e no qual as maiores empresas assumem funções directamente políticas. Ao mesmo tempo, a internacionalização do capital fez com que se encontrem à frente das mesmas empresas e das grandes burocracias supranacionais gestores das mais variadas origens e cores de pele, o que inevitavelmente alterou os termos em que o racismo pode ser formulado. Para entendermos, porém, as democracias contemporâneas como um estádio superior, e tanto mais grave, da repressão camuflada, do controle oculto, da imperceptível manipulação, não devemos esquecer que têm sempre sido estruturalmente inseparáveis das formas mais abjectas de opressão. Se pudessem olhar para o interior de si próprias e para o seu passado como, na novela célebre de Joseph Conrad, o Sr. Kurtz à beira de morrer, exclamariam com ele: « O horror! O horror! »



Notas


1 António Ferro, Salazar, o Homem e a sua Obra, s.1.: Empresa Nacional de Publicidade, 1933,
pp. 73-74.
2 Albert Soboul, La Révolulion Française [Paris]: Gallimard, 1964, vol. II, pp. 176-177.
3 Benito Mussolini, «The Political and Social Doctrine of Fascism», Internalional Conciliation, n.º 306, Janeiro de 1935, reproduzido em Charles F. Delzell (org.) Mediterranean Fascism 1919-1945, New York: Walker, 1971. A frase citada encontra-se na pág. 105.
4 Barbara Miller-Lane, Architettura e Política in Germania 1918-1945, Roma: Officina Edizioni, 1973, pp. 242-243.
5 O discurso de Mussolini no Congresso do partido em Nápoles em Outubro de 1922 vem parcialmente transcrito em Ch. F. Delzell, op. cit. A passagem citada está na pág. 42.
6 B. Mussolini, «The Political and Social Doctrine of Fascism» em ibid. A frase reproduzida encontra-se na pág. 103.
7 Alan Bullock, Hitler, A Study in Tyranny, Harmondsworth: Penguin, 1972, pp. 157-158.
8 Hermann Rauschning, Hitler m'a dit, Paris: Coopération, 1939, pág. 274.
9 Id., ibid., pág. 59.
10 Alan D. Beyerchen, Scientists under Hitler. Politics and the Physics Community in The Third Reich, New Haven e Londres: Yale University Press, 1977, pp. 126-127. Porém, entre outras deficiências, a maior das quais é a de não aprofundar suficientemente as relações ideológicas entre a Física Ariana e o indeterminismo de Heisenberg, o autor deste livro nunca consegue entender que a experimentação a que se referiam Lenard, Stark e os seus seguidores não era de tipo empirista, mas subjectiva e panteísta.
11 Esta obra de Darwin foi editada em Londres por The Folio Society, em 1990, com o título A Naturalist's Voyage. A passagem citada vem na pág. 78.
12 Id., ibid., pág. 173.
13 Charles Darwin, The Descent of Man and Selection in Relation to Sex, Londres: The Folio Society, 1990, pág. 45.
14 Id., ibid., pág. 471.
15 Id., ibid., pág. 73.
16 Id., ibid., pp. 113-119.
17 Id., ibid., pág. 23.
18 Id., ibid., pp . 157 e segs.
19 Id., ibid., pág. 158.
20 Id., ibid., pág. 134.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Racismo, consequência do colonialismo. Brasil.

A colonização européia, iniciada no período imperial, respondia a uma atitude comum da oligarquia das nações latinoamericanas, alçada ao poder com a independência: sua alienação cultural que a fazia ver a sua própria gente com olhos europeus. Como estes, olhavam suspeitosos os negros e mestiços que formavam a maior parte da população e explicavam o atraso prevalecente no país pela inferioridade racial dos povos de cor. Sob a pressão desse complexo de alta identificação "denigrante" puseram-se a campo para substituir aos seus próprios povos, radicalmente se praticável, por gente eugenicamente melhor. E essa seria a
população alva da Europa Central, que se transladava, então, em grandes contingentes para a América do Norte, assegurando o seu progresso. O empreendimento colonizador foi um dos objetivos mais persistentemente perseguido pelo governo imperial, que nele investiu enormes recursos, assegurando aos colonos o pagamento de transporte, facilidades de instalação e de manutenção e concessões de terras.
Condições semelhantes jamais foram oferecidas a populações caipiras brasileiras, que, então, formavam grandes massas marginalizadas pelo latifúndio.

in O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, Darcy Ribeiro pp 437-38