sábado, 5 de janeiro de 2008

A acumulação primitiva através do colonialismo

A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio, a escravização e o enfurnamento da população nativa nas minas, o começo da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África em um cercado para a caça comercial às peles
negras marcam a aurora da era de produção capitalista. Esses processos idílicos são momentos fundamentais da acumulação primitiva. De imediato seque a guerra comercial das nações européias, tendo o mundo por palco. Ela é aberta pela sublevação dos Países Baixos contra a Espanha, assume proporção gigantesca na Guerra Antijacobina da Inglaterra e prossegue ainda nas Guerras do Ópio contra a China etc.
Os diferentes momentos da acumulação primitiva repartem-se então, mais ou menos em ordem cronológica, a saber pela Espanha, Portugal, Holanda, França e Inglaterra. Na Inglaterra, em fins do século XVII, são resumidos sistematicamente no sistema colonial, no sistema da dívida pública, no moderno sistema tributário e no sistema protecionista. Esses métodos baseiam-se, em parte, sobre a mais brutal violência, por exemplo, o sistema colonial. Todos, porém, utilizaram o poder do Estado, a violência concentrada e organizada da sociedade, para ativar artificialmente o processo de transformação do modo feudal de produção em capitalista e para abreviar a transição. A violência é a parteira de toda velha sociedade que está prenhe de uma nova. Ela mesma é uma potência econômica.
Sobre o sistema colonial cristão, um homem que faz da cristandade uma especialidade, W. Howitt, diz:
“As barbaridades e as atrozes crueldades das assim chamadas raças cristãs, em todas as regiões do mundo e contra todo povo que puderam subjugar, não encontram paralelo em nenhuma era da história universal, em nenhuma raça, por maisselvagem e ignorante, por mais despida de piedade e de vergonha que fosse”. 752

A história da economia colonial holandesa — e a Holanda era a nação capitalista modelar do século XVII — “desenrola um insuperável quadro de traição, suborno, massacre e baixeza”.753
Nada é mais característico que seu sistema de roubo de pessoas nas Célebes, a fim de obter escravos para Java. Os ladrões de pessoas eram adestrados para esse fim. O ladrão, o intérprete, e o vendedor eram os agentes principais nesse comércio; os príncipes nativos os principais vendedores.
Os jovens seqüestrados eram escondidos nas prisões secretas das Célebes até que estivessem maduros para o envio aos navios de escravos.
Um relatório oficial diz:
“Esta cidade de Macassar, por exemplo, está cheia de prisões secretas, uma mais horrenda que a outra, entulhadas de miseráveis, vítimas da avidez e da tirania, presos a correntes, arrancados violentamente de suas famílias”.
Para se apoderar de Málaca, os holandeses subornaram o governador português. Em 1641, ele os deixou entrar na cidade. Dirigiram-se imediatamente a sua casa e o assassinaram a fim de se “absterem” do pagamento da soma do suborno de 21 875 libras esterlinas. Onde
punham o pé, seguia devastação e despovoamento. Banjuwangi, uma província de Java, contava em 1750 com mais de 80 mil habitantes, em 1811, apenas 8 mil. Esse é o doux commerce! 754
A Companhia Inglesa das Índias Orientais obteve, como se sabe, além do poder político nas Índias Orientais, o monopólio exclusivo do comércio de chá assim como do comércio chinês em geral e do transporte de mercadorias para a Europa. Mas a navegação costeira da Índia e entre as ilhas bem como o comércio no interior da Índia tornaram-se monopólio dos altos funcionários da Companhia. Os monopólios de sal, ópio, bétel e outras mercadorias eram minas inesgotáveis de riquezas. Os próprios funcionários fixavam os preços e esfolavam a seu bel-prazer o infeliz indiano. O governador geral tomava parte nesse comércio privado. Seus favoritos obtinham contratos sob condições em que, mais espertos que os alquimistas, do nada faziam ouro. Grandes fortunas brotavam num dia, como cogumelos: a acumulação primitiva realizava-se sem adiantamento de um xelim sequer. O processo judicial de Warren Hastings está repleto de tais exemplos. Aqui um caso. Um contrato de ópio é atribuído a um certo Sullivan, no momento de sua partida — em função oficial — para uma parte da Índia totalmente afastada dos distritos de ópio. Sullivan vende seu contrato por 40 mil libras esterlinas a um certo Binn. Este vende-o, no mesmo dia, por 60mil libras esterlinas e o co mprador e executor definitivo do contrato declara que, posteriormente, ainda conseguiu um lucro enorme. Segundo uma lista apresentada ao Parlamento, a Companhia e seus funcionários, de 1757 a 1766, deixaram-se presentear pelos indianos com 6 milhões de libras esterlinas! Entre 1769 e 1770, os ingleses fabricaram uma epidemia de fome por meio da compra de todo arroz e pela recusa de revendê-lo, a não ser por preços fabulosos. 755
O tratamento dos nativos era naturalmente o mais terrível nas plantações destinadas apenas à exportação, como nas Índias Ocidentais, e nos países ricos e densamente povoados, entregues às matanças e à pilhagem, como o México e as Índias Orientais. No entanto, mesmo nas colônias propriamente ditas não se desmentia o caráter cristão da acumulação primitiva. Aqueles protestantes austeros e virtuosos, os puritanos da Nova Inglaterra, estabeleceram, em 1703, por resolução de sua assembly,756 um prêmio de 40 libras esterlinas para cada escalpo indígena e para cada pele-vermelha aprisionado; em 1720, um prêmio
de 100 libras esterlinas para cada escalpo; em 1744, depois de Massachusetts-Bay ter declarado certa tribo como rebelde, os seguintes preços: para o escalpo masculino, de 12 anos para cima, 100 libras esterlinas da nova emissão; para prisioneiros masculinos, 105 libras
esterlinas, para mulheres e crianças aprisionadas 50 libras esterlinas; para escalpos de mulheres e crianças 50 libras esterlinas! Alguns decênios mais tarde, o sistema colonial vingou-se nos descendentes rebeldes dos piedosos pilgrin fathers.757 Com incentivo e pagamento inglês, eles foram tomahawked.758 O Parlamento britânico declarou sabujos e escalpelamento como sendo “meios, que Deus e a Natureza colocaram em suas mãos”.
O sistema colonial fez amadurecer como plantas de estufa o comércio e a navegação. As “sociedades monopolia” (Lutero) foram alavancas poderosas da concentração de capital. Às manufaturas em expansão, as colônias asseguravam mercado de escoamento e uma acu-
mulação potenciada por meio do monopólio de mercado. O tesouro apresado fora da Europa diretamente por pilhagem, escravização e assassinato refluía à metrópole e transformava-se em capital. A Holanda, que primeiro desenvolveu plenamente o sistema colonial, atingira já
em 1648 o apogeu de sua grandeza comercial. Estava “na posse quase exclusiva do comércio das Índias Orientais e do tráfego entre o sudoeste e o nordeste europeu. Sua pesca, a marinha e as manufaturas sobrepujavam as de qualquer outro país.
Os capitais da República eram talvez mais importantes que os do resto da Europa em conjunto”.759
Guelich esquece de acrescentar: o povo holandês era já em 1648 mais sobrecarregado de trabalho, mais empobrecido e mais brutalmente oprimido que os povos do resto da Europa em conjunto. Hoje em dia, a supremacia industrial traz consigo a supremacia
comercial. No período manufatureiro propriamente dito, é, ao contrário, a supremacia comercial que dá o predomínio industrial. Daí o papel preponderante que o sistema colonial desempenhava então. Era o “deus estranho” que se colocava sobre o altar ao lado dos velhos ídolos da Europa e que, um belo dia, com um empurrão e um chute, jogou-os todos por terra. Proclamou a extração de mais-valia como objetivo último e único da humanidade.
...
Com o desenvolvimento da produção capitalista durante o períod0 manufatureiro, a opinião pública da Europa perdeu o que lhe restava de sentimentos de vergonha e consciência. As nações se jactavam cinicamente de cada infâmia que fosse um meio para acumular capital.
Leia-se, por exemplo, os ingênuos anais do comércio do probo A. Anderson. Aí é trombeteado como triunfo da sabedoria política inglesa que a Inglaterra, na paz de Utrecht, pelo tratado de Asiento767 tenha extorquido dos espanhóis o privilégio de explorar o tráfico de negros,
que até então explorava apenas entre a África e as Índias Ocidentais inglesas, também entre a África e a América espanhola. A Inglaterra obteve o direito de fornecer à América espanhola, até 1743, 4 800 negros por ano. Isso proporcionava, ao mesmo tempo, um manto oficial
para o contrabando britânico. Liverpool teve grande crescimento com base no comércio de escravos. Ele constitui seu método de acumulação primitiva. E até hoje a “honorabilidade” liverpoolense continuou sendo o Píndaro do comércio de escravos, o qual — compare o escrito citado do dr. Aikin de 1795 — “eleva o espírito empresarial até a paixão, forma famosos marinheiros e traz enormes somas em dinheiro”. 768 Liverpool ocupava, em 1730, 15 navios no comércio de escravos; 1751: 53; 1760: 74; 1770: 96 e 1792: 132.
Enquanto introduzia a escravidão infantil na Inglaterra, a indústria do algodão dava, ao mesmo tempo, o impulso para transformar a economia escravista dos Estados Unidos, que antes era mais ou menos patriarcal, num sistema de exploração comercial.
De maneira geral, a escravidão encoberta dos trabalhadores assalariados na Europa precisava, como pedestal da escravidão sans phrase, do Novo Mundo. 769
Tantae molis erat 770 para desatar as “eternas leis naturais” do modo de produção capitalista, para completar o processo de separação entre trabalhadores e condições de trabalho, para converter, em um dos pólos, os meios sociais de produção e subsistência em capital e, no pólo oposto, a massa do povo em trabalhadores assalariados, em
“pobres laboriosos” livres, essa obra de arte da história moderna. 771

Se o dinheiro, segundo Augier, “vem ao mundo com manchas naturais de sangue sobre uma de suas faces”, 772 então o capital nasce escorrendo por todos os poros sangue e sujeira da cabeça aos pés. 773

Notas:
752 HOWITT, William. Colonization and Christianity. A Popular History of the Treatment of the Natives by the Europeans in all their Colonies. Londres, 1838, p. 9. Sobre o tratamento dado aos escravos, encontra-se uma boa compilação em COMTE, Charles, Traité de la Législation. 3ª ed., Bruxelas, 1837. Deve-se estudar esse assunto em detalhe, para ver o que o burguês faz de si mesmo e do trabalhador onde pode à vontade modelar o mundo segundo sua imagem.
753 RAFFLES, Thomas Stamford, Late lieut. Gov. of that island. The History of Java. Londres 1817. [v. II, p. CXC-CXCI.]
754 Doce comércio. (N. dos T.)
755 No ano de 1866, somente na província de Orissa, mais de 1 milhão de indianos morreu de fome. Não obstante, procurou-se enriquecer o Tesouro estatal indiano com os preços pelos quais se cediam os alimentos aos famintos.
756 Assembléia. (N. dos T.)
757 Patriarcas peregrinos. — O primeiro grupo de puritanos que se estabeleceu em Plymouth (Massachusetts), em 1620. (N. dos T.)
758 Mortos a machado por índios. (N. dos T.)
759 GUELICH, G. von. Geschichtliche Darstellung des Handels, der Gewerbe und des Ackerbaus der bedeutendsten handeltreibenden Staaten unserer Zeit. Jena, 1830, v. 1, p. 371.
767 Denominação dos acordos pelos quais a Espanha concedia a Estados estrangeiros e pessoas privadas o direito de fornecer escravos negros africanos para suas colônias americanas, do século XVI até o século XVIII. (N. da Ed. Alemã.)
768 "... has coincided with that spirit of bold adventure wich has characterised the trade of Liverpool and rapidly carried it to its present state of prosperity; has occasioned vast employment for shipping and sailors, and greatly augmented the demand for the manufactures of the country". (N. dos T.)
769 Em 1790, nas Índias Ocidentais inglesas havia 10 escravos para 1 homem livre, nas francesas, 14 para 1, nas holandesas, 23 para 1. (BROUGHAM, Henry. An Inquiry into the Colonial Policy of the European Powers. Edimburgo, 1803. v. II, p. 74.)
770 "Tanto esforço fazia-se necessário." Marx utiliza aqui uma expressão de Virgílio. Eneida. Livro Primeiro, verso 33. Lê-se aí: Tantae molis erat Romanum condere gentem (Tanto esforço fazia-se necessário para fundamentar a estirpe romana). (N. da Ed. Alemã.)
771 A expressão labouring encontra-se nas leis inglesas desde o momento em que a classe dos trabalhadores assalariados se torna digna de atenção. Os labouring poor estão em contraposição, por um lado, aos idle poor, mendigos etc., por outro, aos trabalhadores que ainda não se tornaram galinhas depenadas, mas continuam proprietários de seus meios de trabalho. Da lei, a expressão labouring poor transferiu-se para a Economia Política, de Culpeper, J. Child etc. até A. Smith e Eden. Conseqüentemente, julgue-se a bonne foi execrable political cantmonger Edmund Burke, quando ele qualifica a expressão labouring poor como execrable political cant. Esse sicofanta, que a soldo da oligarquia inglesa bancou o romântico em face da Revolução Francesa, do mesmo modo que, a soldo das colônias norte-americanas,
bancara no início dos motins americanos o liberal diante da oligarquia inglesa, era sob todos os aspectos um burguês ordinário: “As leis do comércio são as leis da Natureza e conseqüentemente as leis de Deus”. (BURKE, E. Op. cit., pp. 31-32.) Não é de admirar que ele, fiel às leis de Deus e da Natureza, vendeu sempre a si mesmo no melhor mercado! Encontra-se nos escritos do Rev. Tucker — Tucker era cura e tory, mas de resto um homem correto e competente economista político — uma boa caracterização desse Edmund Burke,
durante sua época liberal. Em face da infame falta de caráter, que predomina hoje, e da crença mais devota nas “leis do comércio”, é dever estigmatizar, sempre de novo, os Burkes, que se diferenciam de seus sucessores apenas por uma coisa: Talento!
772 AUGIER, Marie. Du Crédit Public. [Paris, 1842, p. 265.]
773 "O Capital", diz o Quarterly Reviewer, “foge do tumulto e da contenda, sendo tímido por natureza. Isso é certo, entretanto não é toda a verdade. O capital tem horror à ausência do lucro ou ao lucro muito pequeno, assim como a Natureza ao vácuo. Com um lucro adequado, o capital torna-se audaz, 10% certos, e se pode aplicá-lo em qualquer parte; com 20%, torna-se vivaz; 50%, positivamente temerário; por 100%, tritura sob seus pés todas as leis humanas; 300%, e não há crime que não arrisque, mesmo sob o perigo do cadafalso. Se tumulto e contenda trazem lucro, ele encorajará a ambos. Prova: contrabando e comércio
de escravos.” (DUNNING, T. J. Op. cit., pp. 35-36.)


in O Capital
, Karl Heinrich Marx, pp 370-73 e 377-79 da edição Editora Nova Cultural Ltda, colecção Os Economistas de 1996

Um comentário:

rita disse...

O livro I do Capital pode ser obtido aqui:

http://pravida.org/capital.html