quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

textos sobre racismo

João Bernardo em MAR, nº3, Fevereiro de 1992, pag.3]



1

Uma sociedade de classes não duraria sequer mais um minuto sem instituições e ideologias que reunam exploradores e explorados em mitos comuns. Em Portugal, por ordem de importân­cia, o futebol e o patriotismo. Como ninguém se parece sentir com vocação ou força para atacar o primeiro, pelo menos é bem vindo tudo o que ponha o nacionalismo em causa.
Para repor as coisas no devido lugar seria bom mostrar que, primeiro, os Descobrimentos não o foram. A expansão marítima fez os Portugueses entrar em relação com povos detentores de culturas próprias e, em tantos casos, com circuitos comerciais transconti­nentais já existentes. Segundo, desde início que muitos portugueses, dos que partiram e dos que ficaram, teceram sérias críticas à expansão colonial, que por isso não foi obra de todo um povo, mas de uma parte, contra a opinião de outra. Terceiro, a aristocracia mercantil e os missionários não implantaram a sua cultura num vazio, mas tiveram de destruir ou adulterar as civilizações já existentes. O que recorda, em quarto lugar, que essa expansão de novos ideais assentou em formas destrutivas e no morticínio.
Mas que a crítica ao patriotismo lusíada não sirva para dar brilho aos nacionalismos terceiro-mundistas. Foram os antagonis­mos de classe dessas outras sociedades, ou as habituais chacinas entre os vários povos, que permitiram ao colonialismo penetrar e firmar-se. Os horrores de um dado nacionalismo são o espelho em que todos os demais nacionalismos devem olhar-se.


2 & 3

Um "encontro de antigos opositores"? Para reunir actuais submissos? As celebrações do passado, mesmo daquele com que se esteja de acordo, adormecem as pessoas para as necessidades imediatas. A sociedade portuguesa depara-se hoje com formas de racismo que têm, pelo menos para os que as sofrem, consequências bem mais funestas do que as comemorações dos "descobrimentos". Penso que o encontro mais importante é o dos portugueses que vêem na Comissão o nacionalismo que não querem, com emigrantes africanos - ou os eternos ciganos - vítimas de discriminações de que por vezes só vagamente nos apercebemos.
E, se neste sentido vier a desenvolver-se uma corrente de opinião com efectiva audiência, "um encontro de pessoas de diversas sensibili­dades" não será apenas possível, mas forçoso. Um movimento dotado de verdadeiras bases sociais caracteriza-se precisamente por aglutinar posições tantas vezes distintas. Pode- -se seleccionar o inimigo, nunca se consegue escolher os aliados. E ainda bem.

[em MAR, nº 4, Maio de 1992, pag. 1]



LÁ E CÁ

Portugal inclui-se, nas últimas décadas, entre os países cuja emigração assume proporções económicas mais significativas. Apesar disso a cultura portuguesa oficial - tanto o romance e a poesia como a pesquisa científica - não tem concedido à emigração um lugar compatível com a sua importância. Os festejos em honra do "Sr. Emigrante" servem para ocultar a falta de qualquer trabalho de fundo.
Mas não é por a cultura portuguesa desprezar o papel da emigração que a emigração deixou de ser fundamental nas transformações recentes da nossa sociedade:
Os emigrantes de regresso ou em férias, e sobretudo os seus filhos, com uma mentalidade nova e uma moral mais aberta, deram cabo de alguns hábitos tacanhos e submissões tradicionais nas aldeias e cidades de província.
Nos últimos anos do fascismo a emigração em massa foi responsável por uma elevadíssima percentagem de ausências nas incorporações militares, contribuindo para apressar o fim das guerras coloniais.

*

Sem gozarem do devido reconhecimento no país de origem, os emigrantes sofrem também a hostilidade ou mesmo os insultos raciais nos países para onde vão trabalhar. Mas será que isso lhes abre os olhos para o fenómeno do racismo?
Será que o emigrante português em França, vítima do racismo, se sente solidário com os Árabes ou os Negros, vítimas de um racismo ainda pior? Será que o racismo sofrido pelos Portugueses na Alemanha os aproxima dos Turcos?
Ou será que os Portugueses procuram beneficiar de uma cor de pele relativamente mais clara, de uma religião relativamente mais cristã e de um país que se tem vindo a integrar - relativamente - na CEE?

*

Desenvolveu-se entretanto em Portugal um fenómeno simétrico: o dos imigrantes africanos que para aqui vêm trabalhar.
Todos os emigrantes portugueses sabem - e dizem-no repetida­mente - que a sua presença nos outros países é importante para as economias estrangeiras. Têm por isso de reconhecer que a presença em Portugal dos imigrantes africanos é importante para a economia nacional.
Todos os emigrantes portugueses sofrem manifestações de racismo nos lugares onde trabalham - e relatam-nas em pormenor. Por que não lutam então contra a hostilidade e o racismo de que são vítimas os Africanos em Portugal?
Será que os emigrantes portugueses, tão hábeis em iludir no estrangeiro as barreiras legais - e que tanto gostam de se vangloriar desse seu engenho - irão ajudar agora os imigrantes africanos a fazer o mesmo em Portugal?
Uma sociedade como a portuguesa, onde é difícil encontrar alguém que não tenha pessoas de família na emigração, deveria ser a primeira a manifestar-se contra todas as formas de racismo e a não praticar nenhuma delas.
Enquanto aqueles que forem vítimas do racismo lá se revelarem racistas cá haverá quem se ria cá e lá - os patrões que nos exploram a todos.

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