terça-feira, 15 de abril de 2008

Portugal?

por João Bernardo

[Publicado em Política Operária [Lisboa], ano XXII, nº 107, 2006]

Os marxistas sempre conviveram incomodamente com o nacionalismo. Na obra teórica de Marx e de Engels figuram as classes sociais e as relações de exploração, e neste contexto o nacionalismo não ocupa qualquer lugar. Onde o nacionalismo aparece é nos escritos de circunstância dos dois amigos, em artigos de jornal e panfletos de intervenção, e ainda em livros dedicados a assuntos correntes. Aí deparamos com um tipo de nacionalismo que deixaria perplexos ou indignados os marxistas se os marxistas tivessem interesse ou propensão pela leitura da obra de Marx e Engels. Trata-se de um nacionalismo regido por dois princípios básicos.

Um destes princípios, o antieslavismo, recusava o direito de existência às nações eslavas que pretendiam emancipar-se do Império Austro-Húngaro ou do Império Otomano, com a excepção única da Polónia, devido ao ocidentalismo de que ela dava mostras e à sua hostilidade às restantes nações eslavas hegemonizadas pela figura, real ou simbólica, do czar. O antieslavismo de Marx foi tão afrontoso que a sua filha Eleanor, ao reeditar, passados dezasseis anos sobre a morte do pai, um longo panfleto contra a política externa dos czares no século XVIII, achou preferível suprimir algumas passagens da edição original, até que Stalin, que usava uma tesoura maior e mais aguçada, proibiu definitivamente o livro. Engels não ficou atrás do amigo, e em 1934 Stalin impediu a difusão na União Soviética de uma obra sua, acusando-a, com inteira razão, de ter apresentado uma guerra eventual entre a Alemanha burguesa e a Rússia czarista não como um conflito imperialista mas como um esforço de libertação nacional da parte da Alemanha. Aliás, ao deparar com o sistemástico antieslavismo de Marx e de Engels a censura staliniana manteve-lhes inéditos vários manuscritos. E assim os pais fundadores foram vítimas imprevistas da ortodoxia dos discípulos. Coisas que sucedem aos criadores de escolas.

O segundo princípio básico seguido por Marx e por Engels para avaliar as questões nacionais era a viabilidade económica dos aspirantes a países e o facto de as suas populações terem ou não participado no que então se julgava ser a história, com maiúscula. Povos

inviáveis e povos «sem história» estariam, na opinião dos dois amigos, condenados ao desaparecimento. Este princípio foi seguido pelas alas maioritárias dos partidos integrantes da Segunda Internacional, e aqueles marxistas que depois bradaram contra o reformismo de tais partidos e contra o seu colonialismo ignoravam na maior parte dos casos que os insultados estavam apenas a ser fiéis aos mestres. Se a questão das nacionalidades começou a ser apresentada a outra luz por facções minoritárias nos congressos da Segunda Internacional e se a perspectiva da autodeterminação foi depois plenamente aceite na Terceira Internacional, isto não se deveu aos marxistas mas aos povos colonizados, que impuseram a sua presença e que, apesar de serem «sem história» e de pretenderem formar países economicamente inviáveis, disseram: estamos aqui – e instalaram-se para ficar.

Os marxistas aproveitaram os anseios de descolonização e fizeram-no com eficácia prática e proveito político. Mas que lições teóricas haveriam de tirar do assunto, isso ficaram sem saber, e ensaiaram com pouco ou nenhum êxito várias teorias que ao mesmo tempo explicassem as classes e as nações. Na Alemanha a seguir à primeira guerra mundial um Partido Comunista que se tornara o maior do mundo depois do da União Soviética procurou aplicar relativamente à questão da opressão nacional uma linha tão obtusa que contribuiu poderosamente para instalar Hitler na chancelaria. E depois de terem sido um elemento activo em todos os processos de descolonização, os comunistas viram-se marginalizados na vida política, quando não mesmo liquidados fisicamente aos milhares e aos milhões, em todos os novos países independentes, com a excepção singular da China, onde precisamente haviam seguido um chefe que não obedecera aos ditames da Terceira Internacional nem procurara resolver os problemas da descolonização a partir dos textos dos mestres.

Mas por que estou eu a alongar-me sobre este assunto e a perder um espaço precioso, do pouco que foi posto à minha disposição?

É que, segundo ouvi dizer, muito se tem comentado o facto de uma percentagem considerável de portugueses ser favorável ao desaparecimento de Portugal através da sua integração na Espanha. Todavia, o espanto de uns, a indignação de outros e, sejamos sinceros, sem dúvida o alívio dos restantes parece-me resultarem de uma confusão, porque se está a dar

o mesmo nome a duas coisas muito diferentes.

Uma coisa é o Portugal que terminou em 1580 ao integrar-se nos domínios de um Habsburgo do ramo ibérico, outra coisa é o Portugal onde sessenta anos depois, aproveitando a crise do império dos Filipes, uma pequena conspiração colocou no trono uma dinastia nativa. Se os leitores da Política Operária não padecessem da habitual indiferença à estética revelada pela extrema-esquerda quando está fora do poder – digo quando está fora do poder,

porque quando chega ao poder logo descobre que os artistas são os piores inimigos se não forem os mais úteis propagandistas – eu poderia demonstrar rapidamente que se trata de dois Portugais distintos. Veja-se a linhagem da pintura que vai desde o Ecce Homo de um mestre desconhecido, desde Nuno Gonçalves, do mestre da Lourinhã, de Vasco Fernandes até chegar a Gregório Lopes, a Cristóvão de Figueiredo e a Cristóvão Morais. E o Domingos Vieira que em 1635 pintou aquele assombroso retrato de D. Isabel de Moura só se pode entender no contexto amplamente ibérico que o influenciou e formou, não no do Portugal estabelecido cinco anos depois, onde o rei João IV se faria retratar pelo artífice Avelar Rebelo a quem mesmo um fidalgo de província como ele deveria ter tido vergonha de recorrer. Depois do hiato na pintura portuguesa quem veio? Josefa de Óbidos!

O Portugal de antes de 1580 expandira-se por todo o lado, mas, em vez de lhe esgotar a seiva interna, isso como que o renovara. E a par das espoliações e das atrocidades restou uma cultura capaz de reflecti-las, ao mesmo tempo elogiosa e criticamente, e que por isso conta no mundo. Pelo facto de enviar a sua gente desde o Japão até ao Amazonas o país não deixara de existir no ocidente das Espanhas.

Mas o Portugal nascido em 1640, o país dos Braganças, da Josefa de Óbidos e da doçaria freirática, foi incapaz de criar dentro das suas fronteiras uma cultura própria. Enquanto a depauperação de Portugal era consagrada em 1703 com a assinatura do tratado dito de Methuen, o Brasil desenvolvia-se economicamente, e apesar de todo o ouro que João V de lá tirou, foi no Brasil e não em Mafra nem em Lisboa no Largo da Misericórdia que se edificou uma grande arquitectura barroca, foi lá que surgiu uma inventiva escultura barroca, foi lá que se fez ouvir uma corrente original de música barroca. Aliás, o pouco de bom como algum do mau dos edifícios barrocos portugueses foi a arquitectos estrangeiros que se deveu. Já capital económica do império, o Brasil depressa passara a ser também a sua capital cultural. Portugal tinha-se esvaziado de conteúdo, o que havia estava no Brasil. E quando a metrópole quis aproveitar simultaneamente Angola, apesar do engenho e da diligência de Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, foi incapaz de fazê-lo. Portugal não chegava para duas colónias ao mesmo tempo. Até que, fugindo a um general francês que nem marechal era, o monarca se estabeleceu no Brasil, e a colónia, que já assumira a hegemonia económica e cultural, converteu-se na cabeça política do império.

Aliás, a propósito da fuga de João VI vale a pena reflectir em algo a que geralmente não se presta atenção. Também a Espanha se encontrava sem família real, que Napoleão atraíra numa cilada e fizera prender. E isto não impediu que toda a população espanhola se erguesse maciçamente contra o ocupante francês numa guerrilha indomável e pertinaz. Os

historiadores meditam por vezes, sem resultado, sobre as razões que fizeram o povo espanhol revoltar-se enquanto as nações de língua alemã permaneceram submissas a Napoleão e deixaram os seus improvisados chefes guerrilheiros sem apoio e quase sem seguidores, só tardiamente se sublevando alguns estados alemães. Mas a minha interrogação é outra, e eu gostaria que me dissessem por que motivo os portugueses, aqui, ao lado da Espanha, não fizeram contra os invasores o mesmo que os espanhóis?

Mas retomo o fio da minha reflexão, com João VI já no Rio de Janeiro. Alguns anos depois, rezam os manuais, o Brasil tornou-se independente, mas é falso, quem se tornou independente em 1822, ou melhor, quem foi tornado independente contra a sua vontade, foi Portugal. No Brasil o herdeiro da coroa fez o que todos eles gostam de fazer quando podem, apressou um pouco a data do acesso ao trono, e na perfeita continuidade dinástica declarou que o Brasil dispensava a metrópole. Numa carta enviada ao pai em Junho de 1822 o príncipe Pedro, nas vésperas de se arvorar em imperador, definiu como «estados independentes» «os que de nada carecem, como o Brasil», e pondo os pontos nos is acrescentou: «Portugal é hoje em dia um estado de quarta ordem e necessitado, por consequência dependente».

Quando as cortes souberam que haviam ficado sem o Brasil enviaram uma missiva ao poder executivo perguntando quantas e quais eram as colónias portuguesas e, mais especificamente, se Timor e Solor pertenciam ou não a Portugal. E note-se que os deputados daquela época eram o escol da nação, os principais negociantes, os juízes mais cultos, os burocratas mais instruídos, os oficiais do exército que sabiam matemática. Aquela interrogação é duplamente curiosa, por um lado porque mostra a verdadeira dimensão do império colonial que realmente contava para o Portugal gerado em 1640, reduzido a uma metrópole colada como adesivo ao Brasil. Mas, por outro lado, mais interessante ainda me parece ser a reacção da elite política, económica e militar que não pensou na possibilidade de construir alguma coisa dentro das fronteiras do reino.

Com efeito, será o mais lúcido dos herdeiros do liberalismo vintista quem irá orientar Portugal e os portugueses para África. A imperturbável coragem física de Sá da Bandeira só tinha equivalente na sua enorme curiosidade intelectual, e ambas alicerçaram uma notável inteligência prática. Mas ao mandar os portugueses caminharem a partir das costas africanas, onde até então se haviam localizado os empórios comerciais, para ocuparem espaços de colonização no interior do continente e «construir outro Brasil em África», Sá da Bandeira desencadeou um processo que forneceu a ocasião, quando não só o pretexto, para um movimento idêntico por parte de metrópoles muitíssimo mais poderosas. O tratado de Berlim e depois o ultimatum britânico, que cercearam as aspirações africanas dos liberais

portugueses, foram a consequência última, e de todo imprevisível, do arrojo com que Sá da Bandeira havia reconhecido a impossbilidade de dar nova vida a Portugal só nas fronteiras ibéricas.

E foi o ultimatum britânico que ditou a falência da monarquia, mostrando que os Braganças eram incapazes de levar a cabo a regeneração do país pelo colonialismo, uma vocação que Eça de Queiroz enunciou simbolicamente através da regeneração da casa ilustre de Ramires. Tornada patente e pública a inépcia da coroa nas questões coloniais, o Partido Republicano, que até à data do ultimatum fora visto como um clube de lunáticos, adquiriu um crescente apoio popular, que lhe possibilitaria vinte anos depois espantar o rei para a Ericeira e após dois dias de canhoneio na capital proclamar a república. Logicamente, o Partido Democrático não poderia senão precipitar o país na primeira guerra mundial, para que Portugal se sentasse ao lado dos vencedores aquando da distribuição dos despojos, e já que decerto não receberia nada – ninguém contava com isso – pelo menos que não perdesse o que tinha.

Salazar foi, nesta perspectiva, inteiramente lúcido quando proclamou «para Angola, e em força». Os «ventos da mudança» de que os outros falavam não sopravam aqui, porque a Grã-Bretanha pôde ver as suas colónias emanciparem-se sem que houvesse quaisquer riscos de perda de identidade da metrópole. Nem a França, ou mais exactamente Paris, deixou de ser

o que era pelo facto de a África Ocidental e Equatorial Francesa, Madagascar e a Indochina terem deixado de ser o que haviam sido. Até a pequenina Holanda soube ser um país estritamente europeu, próspero na economia e modelar na cultura, sem as suas Índias Orientais. Mas Portugal?

O golpe militar de 25 de Abril de 1974, todos sabemos, não se destinou a acabar com

o fascismo, mas a demitir um governo que não queria pôr cobro a três guerras coloniais, embora os oficiais e os soldados sentissem que era impossível vencer. O derrube do fascismo veio por acréscimo, uma espécie de brinde que obtivemos dos movimentos de libertação africanos. Mas merecêmo-lo, porque durante um ano e meio fizemos qualquer coisa de absolutamente inédito, que nunca havia sido experimentado no Portugal nascido em 1640, tentámos inventar um país dentro das fronteiras portuguesas. De uma maneira ou de outra, ou de várias maneiras ao mesmo tempo, a extrema-esquerda procurou em 1974 e 1975 criar um Portugal inteiramente novo, económica e socialmente, e que fosse um país original no mundo, capaz de trazer soluções diferentes, que ninguém tivesse feito nem visto. E fomos derrotados.

Não creio que a esquerda anticapitalista, apesar de contar já dois séculos de derrotas sucessivas – e, naturalmente, no combate ao capitalismo só poderá haver uma vitória, que é a

última – se tenha apercebido de até que ponto as derrotas são profundas quando são impostas no plano social mais do que no político. No plano social as derrotas consistem na verdadeira desorganização e reorganização da classe trabalhadora, na destruição dos seus elos mais fortes de solidariedade, na dissolução dos seus centros de resistência tradicionais, no apagamento da sua memória, e numa re-hierarquização interna, que é a condição da submissão aos exploradores. E assim, fracassada a tentativa de 1974 e 1975, voltámos plenamente ao Portugal de 1640, incapaz de existir nas suas fronteiras próprias porque é desprovido de tudo. A adesão de Portugal à comunidade europeia foi um logro para os outros países europeus, que pensaram que tinham adquirido alguma coisa e afinal ficaram só com um terminal de caminhões TIR e umas dezenas de centros comerciais e de estádios de futebol. Um país sem vida autónoma nem identidade cultural.

Discutir se este Portugal deve ou não integrar-se na Espanha é ocioso. Ele já lá está, na Espanha ou em qualquer outro lugar, em todo o lugar menos em Portugal.

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